quarta-feira, 6 de junho de 2012

A ARTE DE ANDAR BEM

LXXXVI


A igualdade de alma não recebe, em geral, recompensas exteriores; mas é certamente favorável à saúde. Um homem feliz deixa-se esquecer; a glória vi-lo-á buscar quarenta anos depois da sua morte. Mas contra a doença, mais íntima do que a inveja e bem mais temível, a felicidade é a melhor arma. Contra o que o homem triste encontra para dizer que a felicidade é um efeito e não uma causa; é simplificar demasiado. A força faz com que se ame a ginástica; mas a ginástica voluntária dá força. Em resumo, há certamente uma atitude visceral, se é permitido dizer assim, que favorece o combate e a eliminação, e uma outra, contrária, que estrangula e envenena aquele que a toma. Sem dúvida não se pode estender e massajar as suas próprias vísceras como se estendem os dedos; mas como a alegria é o sinal evidente duma boa atitude visceral, pode-se apostar que todos os pensamentos na direcção da alegria dispõem também à saúde.

Seria preciso então regozijarmo-nos quando estamos doentes? Mas isso, dizeis vós, é absurdo e impossível. Esperai. Já se disse bastantes vezes que a existência do homem de guerra, os projécteis postos de lado, era boa para a saúde. Eu pude dar-me conta disso, tendo levado durante três anos a existência do coelho na tapada, que dá três voltas no orvalho, e reentra no seu buraco ao menor ruído. Três anos sem sentir outra coisa além da fadiga e da necessidade de dormir. Ora, eu tinha o estômago do meu século, e arrastava uma doença mortal desde os meus vinte anos, como todos os que pensam sem agir. Diz-se depressa de mais que esta prosperidade do corpo se deve ao ar do campo e à vida activa; mas apercebo-me de outras causas. Um cabo de infantaria, o mesmo que me dizia: “Nós já não temos medo; só temos transes”, veio um dia ao meu abrigo com uma cara que exprimia a felicidade. “Desta vez, disse ele, estou doente. Tenho febre; o major disse-mo; amanhã volto a vê-lo. É talvez a febre tifóide; já não me aguento de pé; a paisagem anda à roda. Enfim é o hospital. Depois de dois anos e meio de lama, bem mereci esta sorte.” Mas eu via bem que a alegria o curava. No dia seguinte já não era questão  de febre, mas de atravessar as agradáveis ruínas de Flirey, e para ganhar uma posição ainda pior.

Não é uma falta estar doente; a disciplina não pode nada contra, nem a honra. Qual é o soldado que não espiou nele mesmo, nos transportes da esperança, os sintomas duma doença, mesmo mortal? Acaba-se por pensar, nesses dias atrozes, que é de facto agradável morrer de doença. Tais pensamentos são muito fortes contra toda a doença. A alegria dispõe o corpo, no seu interior, melhor do que o mais hábil médico o saberia fazer. Não é  mais esse medo de ficar doente que agrava tudo. Se houve, como se diz, solitários que esperavam a morte como uma graça de Deus, não me admira que morressem centenários. Esta duração que admiramos nos velhos, quando deixaram de se interessar por  coisa alguma, vem sem dúvida de que  já não sentem o medo de morrer. Coisas que é sempre bom compreender, como é bom compreender que a rigidez, que vem do medo, faz cair o cavaleiro. Há um género de despreocupação que é uma grande e poderosa astúcia.


Alain
(Tradução de José Ames)

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