LXXXIX
Há um género de felicidade que é tanto de nós como um
manto. Assim a felicidade de herdar ou de ganhar na lotaria; também a glória,
porque depende de encontros. Mas a felicidade que depende das nossas forças
próprias é pelo contrário incorporada; estamos mais dela impregnados do que a
lã pela púrpura. O sábio dos tempos antigos, salvando-se do naufrágio e chegando nu à costa, dizia: “ Trago toda a
fortuna comigo.” Assim Wagner trazia a sua música e Miguel Ângelo todas as
sublimes figuras que podia traçar. O pugilista tem também os seus punhos e as
suas pernas e todo o fruto dos seus trabalhos doutra maneira que se tem uma
coroa ou dinheiro. Todavia há várias maneiras de ter dinheiro, e aquele que
sabe fazer dinheiro, como se diz, é ainda rico por ele mesmo no momento em que
tudo tenha perdido.
Os sábios de outrora procuravam a felicidade; não a
felicidade do vizinho, mas a sua própria. Os sábios de hoje estão de acordo em
ensinar que a felicidade própria não é uma nobre coisa a procurar, uns
aplicando-se a dizer que a virtude despreza a felicidade, e isso não é difícil
de dizer; os outros ensinando que a felicidade comum é a verdadeira fonte da
felicidade própria, o que é sem dúvida a opinião mais oca de todas, porque não
há ocupação mais vã do que verter felicidade nas pessoas em volta como em odres
furados; já observei que aqueles que se aborrecem com eles mesmos, não podem
ser divertidos; e ao contrário, àqueles que nada mendigam, é a esses que se
pode dar alguma coisa, por exemplo, a música àquele que se fez músico. Em
resumo, não serve de nada semear na areia; e creio ter compreendido, pensando
bem nisso, a célebre parábola do semeador, que julga incapazes de receber
aqueles a quem tudo falta. Quem é forte
e feliz por si será pois feliz e forte pelos outros ainda mais. Sim, os felizes
farão um belo comércio e uma bela troca; mas é preciso ainda que neles
tenham felicidade, para a dar. E como o
homem resoluto deve olhar, de uma vez para sempre, para esse lado, o que o
desvia duma certa maneira de amar que não serve de nada.
Sou de opinião, pois,
que a felicidade íntima e própria não é em nada contrária à virtude, mas
antes é em si mesma virtude, como esta bela palavra virtude nos adverte, que
quer dizer força. Porque o mais feliz no sentido pleno é bem claramente aquele
que melhor lançará pela borda fora a outra felicidade, como se deita fora uma
vestimenta. Mas a sua verdadeira riqueza não a lança de nenhum modo, nem pode;
nem mesmo o soldado que ataca ou o aviador que cai; a sua íntima felicidade
está tão bem encavilhada neles mesmos como a sua própria vida; eles combatem
com a sua felicidade como com uma arma; o que fez dizer que há felicidade no
herói que cai. Mas é preciso usar aqui
desta forma correctora que propriamente pertence a Spinoza e dizer: não
é porque eles morriam pela pátria que eram felizes, mas pelo contrário, é
porque eram felizes que tinham a força de morrer. Que assim sejam entrançadas
as coroas de Novembro.
Alain
(Tradução de José Ames)
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