segunda-feira, 11 de junho de 2012

FELICIDADE É VIRTUDE

LXXXIX


Há um género de felicidade que é tanto de nós como um manto. Assim a felicidade de herdar ou de ganhar na lotaria; também a glória, porque depende de encontros. Mas a felicidade que depende das nossas forças próprias é pelo contrário incorporada; estamos mais dela impregnados do que a lã pela púrpura. O sábio dos tempos antigos, salvando-se do naufrágio  e chegando nu à costa, dizia: “ Trago toda a fortuna comigo.” Assim Wagner trazia a sua música e Miguel Ângelo todas as sublimes figuras que podia traçar. O pugilista tem também os seus punhos e as suas pernas e todo o fruto dos seus trabalhos doutra maneira que se tem uma coroa ou dinheiro. Todavia há várias maneiras de ter dinheiro, e aquele que sabe fazer dinheiro, como se diz, é ainda rico por ele mesmo no momento em que tudo tenha perdido.

Os sábios de outrora procuravam a felicidade; não a felicidade do vizinho, mas a sua própria. Os sábios de hoje estão de acordo em ensinar que a felicidade própria não é uma nobre coisa a procurar, uns aplicando-se a dizer que a virtude despreza a felicidade, e isso não é difícil de dizer; os outros ensinando que a felicidade comum é a verdadeira fonte da felicidade própria, o que é sem dúvida a opinião mais oca de todas, porque não há ocupação mais vã do que verter felicidade nas pessoas em volta como em odres furados; já observei que aqueles que se aborrecem com eles mesmos, não podem ser divertidos; e ao contrário, àqueles que nada mendigam, é a esses que se pode dar alguma coisa, por exemplo, a música àquele que se fez músico. Em resumo, não serve de nada semear na areia; e creio ter compreendido, pensando bem nisso, a célebre parábola do semeador, que julga incapazes de receber aqueles a quem tudo  falta. Quem é forte e feliz por si será pois feliz e forte pelos outros ainda mais. Sim, os felizes farão um belo comércio e uma bela troca; mas é preciso ainda que neles tenham  felicidade, para a dar. E como o homem resoluto deve olhar, de uma vez para sempre, para esse lado, o que o desvia duma certa maneira de amar que não serve de nada.

Sou de opinião, pois,  que a felicidade íntima e própria não é em nada contrária à virtude, mas antes é em si mesma virtude, como esta bela palavra virtude nos adverte, que quer dizer força. Porque o mais feliz no sentido pleno é bem claramente aquele que melhor lançará pela borda fora a outra felicidade, como se deita fora uma vestimenta. Mas a sua verdadeira riqueza não a lança de nenhum modo, nem pode; nem mesmo o soldado que ataca ou o aviador que cai; a sua íntima felicidade está tão bem encavilhada neles mesmos como a sua própria vida; eles combatem com a sua felicidade como com uma arma; o que fez dizer que há felicidade no herói que cai. Mas é preciso usar aqui  desta forma correctora que propriamente pertence a Spinoza e dizer: não é porque eles morriam pela pátria que eram felizes, mas pelo contrário, é porque eram felizes que tinham a força de morrer. Que assim sejam entrançadas as coroas de Novembro.


Alain
(Tradução de José Ames)

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