terça-feira, 5 de junho de 2012

PLATÃO MÉDICO

LXXXV


Ginástica e música eram os dois grandes meios de Platão médico.  Ginástica significa trabalho moderado dos músculos sobre eles mesmos, com vista a estendê-los e massajá-los interiormente segundo a sua forma. Os músculos doridos parecem esponjas carregadas de poeira; limpam-se os músculos como as esponjas, enchendo-os de líquido e espremendo-os mais de uma vez. Os fisiologistas disseram já bastantes vezes que o coração é um músculo oco; mas, visto que os músculos encerram uma rica rede de vasos sanguíneos, que são alternadamente comprimidos e dilatados pela contracção e o relaxamento, podia-se de facto dizer também que cada músculo é uma espécie de coração esponjoso cujos movimentos, precioso recurso, podem ser regulados pela vontade. Por isso se vê que aqueles que não dominam os seus músculos pela ginástica, e a que são chamados  tímidos, sentem neles mesmos ondas sanguíneas desreguladas que se dirigem às partes moles, o que faz  que ora a face cora sem razão, ora o cérebro é invadido por um sangue demasiado apressado, o que lhes provoca curtos delírios, ora as suas entranhas são como que inundadas, mal-estar bem conhecido; contra o que um exercício regulado dos músculos é seguramente o melhor remédio. E é aqui que se vê aparecer a música sob a forma do professor de dança, que, pela sua pequena cegarrega, regula o melhor possível a circulação visceral. Assim a dança cura da timidez como cada um sabe, mas alivia o coração doutra maneira ainda, estendendo os músculos moderadamente e sem  convulsão.

Alguém que tinha dores de cabeça dizia-me um destes dias que os movimentos de mastigação, durante o repasto, o aliviavam imediatamente. Eu disse-lhe: “É preciso então mastigar pastilha, à maneira dos americanos.” Mas não sei se ele tentou. A dor lança-nos imediatamente em concepções metafísicas; na sede da dor imaginamos um mal, ser fantástico que se introduziu sob a nossa pele, e que gostaríamos de expulsar por feitiçaria. Parece-nos inverosímil que um movimento regulado dos músculos apague a dor, monstro roedor; mas, em geral,  não há  nenhum monstro roedor nem nada que se pareça; são más metáforas. Experimentai  ficar muito tempo sobre um pé, constatareis que não é preciso uma grande mudança para produzir uma dor viva, nem uma grande mudança para a fazer desaparecer. Em todos os casos, ou quase, é uma certa dança que se trata de inventar. Cada um sabe bem que é uma felicidade estender os músculos e bocejar livremente; mas não se tem a ideia de o tentar por ginástica; a fim de desencadear esse movimento libertador. E aqueles que não conseguem dormir deviam mimar a vontade de dormir e a felicidade de se distender. Mas, pelo contrário,  eles mimam a impaciência, a ansiedade, a cólera. Aqui estão as raízes do orgulho, sempre demasiado punido. Eis por que, pedindo emprestado o barrete de Hipócrates, tento descrever a verdadeira modéstia, irmã de higiene, e filha de ginástica e de música.


Alain
(Tradução de José Ames)

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