sexta-feira, 1 de junho de 2012

SABER-VIVER

LXXXIII


Há uma polidez de cortesão, que não é bela. Mas também não é cortesia. E parece que tudo o que é deliberado está fora da cortesia. Por exemplo um homem realmente polido poderá tratar duramente e até à violência um homem desprezível ou mau; não é descortesia. A benevolência deliberada não é também cortesia; a lisonja calculada não é cortesia. A cortesia relaciona-se somente com as acções que se fazem sem pensar e que exprimem alguma coisa que temos a intenção de exprimir.

Um homem de primeiro movimento, que diz tudo o que lhe vem, que se abandona ao primeiro sentimento, que mostra  sem contenção espanto, desgosto, prazer, antes mesmo de saber aquilo que experimenta, é um homem descortês; terá sempre que pedir desculpa, por ter perturbado e inquietado os outros sem intenção, contra a sua intenção.

É penoso ferir alguém sem querer, por um relato à doida; o homem cortês é aquele que sente o incómodo antes que o mal seja sem remédio, e que muda de rumo elegantemente; mas há mais cortesia ainda em adivinhar antecipadamente aquilo que é preciso dizer e o que não se deve dizer, e, na dúvida, em deixar ao dono da casa a direcção da conversa. Tudo isso para evitar prejudicar sem querer; porque, se julgar necessário  picar um perigoso personagem no sítio certo, é livre de o fazer; o seu acto releva então da moral propriamente falando, e já não da cortesia.

A descortesia é sempre falta de jeito. É errado fazer sentir a alguém a idade que tem; mas se o fazemos sem querer, pelo gesto ou pela fisionomia, ou palavra pouco meditada, somos descorteses. Calcar o pé de alguém é violência se se faz voluntariamente; se é involuntariamente é descortesia. As descortesias são ricochetes imprevistos; um homem polido evita-as e só toca onde quer tocar; toca ainda melhor. Polido não quer dizer adulador necessariamente.

A cortesia é pois um hábito e um à vontade. O descortês, é aquele que faz outra coisa que não o que quer fazer, como quando arrasta consigo a baixela ou os bibelots; é aquele que diz o que não quer dizer, ou que significa, pelo tom brusco, pela voz inutilmente forte, pela hesitação, pela gaguez, outra coisa que não o que quer significar. A cortesia pode pois aprender-se, como a esgrima. Um fátuo é um homem que significa sem saber o quê, por extravagância deliberada. Um tímido é um homem que gostaria de não ser fátuo, mas que não sabe como fazer, porque adverte a importância dos actos e das palavras; por isso o vedes apertar-se e contrair-se, a fim de se impedir de agir e de falar; esforço prodigioso sobre si mesmo, que o torna tremente, suado e vermelho, e ainda mais desajeitado do que é por natureza. A graça, pelo contrário, é uma felicidade de expressão e de movimento que não inquieta nem fere ninguém. E as qualidades deste género importam muito para a felicidade. Uma arte de viver nunca as deve negligenciar.


Alain
(Tradução de José Ames)

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