XXXII
“Como se vive mal, disse um, com aqueles que se conhecem
de mais. Gememos sem contenção sobre nós mesmos e por aí se engrossam as
pequenas misérias; eles também. Queixamo-nos facilmente dos seus actos, das
suas palavras, dos seus sentimentos; deixa-se as paixões rebentar;
permitimo-nos cóleras por fracos motivos; está-se sempre seguro da atenção, da
afeição, e do perdão; já nos fizemos conhecer demasiado bem para nos mostrarmos
sob o lado favorável. Esta franqueza de todos os instantes não é verídica; ela
amplia tudo; daí um azedume de tom e uma vivacidade de gestos que espantam nas
famílias mais unidas. A cortesia e as cerimónias são mais úteis do que se crê.”
“Como se vive mal, diz o outro, com aqueles que não se
conhece de todo. Há mineiros debaixo de terra que escavam para um accionista.
Há costureiras que se esgotam para as coquetes clientes dum grande armazém. Há
desgraçados que neste momento ajustam e colam brinquedos às centenas, e a um preço vil, para
o prazer das crianças ricas. Nem as crianças ricas, nem as elegantes, nem os
accionistas pensam em nada disso; ora todos têm
pena dum cão perdido ou dum cavalo exausto; são polidos e bons com os seus domésticos, e
não suportam vê-los com os olhos vermelhos ou o ar amuado. Paga-se muito bem
uma gorjeta, e sem hipocrisia, porque se vê a alegria do empregado de café, do
estafeta, do cocheiro. O mesmo homem,
que paga liberalmente a um bagageiro, afirma que os ferroviários podem viver
sem se privarem com o que a Companhia lhes dá. Cada um, a todo o minuto, mata o
mandarim; e a sociedade é uma máquina maravilhosa que permite às boas pessoas
serem cruéis sem o saberem.”
“Como se vive bem, diz um terceiro, com aqueles que não se
conhecem bem. Cada um contém as suas palavras e os seus gestos, e por isso
mesmo as suas cóleras. O bom humor está em todos os rostos e não tarda muito
nos corações. Aquilo que se lamentaria ter dito, não se pensa mesmo em dizê-lo.
Mostramo-nos favorecidos diante dum homem que
nos desconhece completamente; e este esforço torna-nos muitas vezes mais
justos para os outros, e para nós mesmos. Não se espera nada dum desconhecido;
ficamos todos contentes com o pouco que ele dá. Já observei que os estrangeiros
são amáveis, porque não sabem dizer nada além da cortesia, sem pontas; daí vem que alguns se sintam agradados num
país estrangeiro; não têm aí ocasião de serem maus, e estão mais contentes com
eles mesmos. Fora mesmo das conversações, que amizade, que sociedade no
passeio! Um velho, uma criança, mesmo um cão circulam aí à vontade; pelo
contrário na rua, os cocheiros injuriam-se, cada um é pressionado por viajantes
que não se vêem uns aos outros; o mecanismo não é complicado, mas ele já range.
A paz social resultará de relações directas, de mistura de interesses, de
trocas directas, não por organizações, que são mecanismos, como sindicatos e
corpos constituídos, mas pelo contrário por unidade de vizinhança, nem muito
grandes, nem demasiado pequenas. O federalismo por regiões é o verdadeiro.”
Alain
(Tradução de José Ames)