segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

PAIXÕES DE VIZINHANÇA

XXXII


“Como se vive mal, disse um, com aqueles que se conhecem de mais. Gememos sem contenção sobre nós mesmos e por aí se engrossam as pequenas misérias; eles também. Queixamo-nos facilmente dos seus actos, das suas palavras, dos seus sentimentos; deixa-se as paixões rebentar; permitimo-nos cóleras por fracos motivos; está-se sempre seguro da atenção, da afeição, e do perdão; já nos fizemos conhecer demasiado bem para nos mostrarmos sob o lado favorável. Esta franqueza de todos os instantes não é verídica; ela amplia tudo; daí um azedume de tom e uma vivacidade de gestos que espantam nas famílias mais unidas. A cortesia e as cerimónias são mais úteis do que se crê.”

“Como se vive mal, diz o outro, com aqueles que não se conhece de todo. Há mineiros debaixo de terra que escavam para um accionista. Há costureiras que se esgotam para as coquetes clientes dum grande armazém. Há desgraçados que neste momento ajustam e colam  brinquedos às centenas, e a um preço vil, para o prazer das crianças ricas. Nem as crianças ricas, nem as elegantes, nem os accionistas pensam em nada disso; ora todos têm  pena dum cão perdido ou dum cavalo exausto;  são polidos e bons com os seus domésticos, e não suportam vê-los com os olhos vermelhos ou o ar amuado. Paga-se muito bem uma gorjeta, e sem hipocrisia, porque se vê a alegria do empregado de café, do estafeta, do cocheiro.  O mesmo homem, que paga liberalmente a um bagageiro, afirma que os ferroviários podem viver sem se privarem com o que a Companhia lhes dá. Cada um, a todo o minuto, mata o mandarim; e a sociedade é uma máquina maravilhosa que permite às boas pessoas serem cruéis sem o saberem.”

“Como se vive bem, diz um terceiro, com aqueles que não se conhecem bem. Cada um contém as suas palavras e os seus gestos, e por isso mesmo as suas cóleras. O bom humor está em todos os rostos e não tarda muito nos corações. Aquilo que se lamentaria ter dito, não se pensa mesmo em dizê-lo. Mostramo-nos favorecidos diante dum homem que  nos desconhece completamente; e este esforço torna-nos muitas vezes mais justos para os outros, e para nós mesmos. Não se espera nada dum desconhecido; ficamos todos contentes com o pouco que ele dá. Já observei que os estrangeiros são amáveis, porque não sabem dizer nada além da cortesia, sem pontas;  daí vem que alguns se sintam agradados num país estrangeiro; não têm aí ocasião de serem maus, e estão mais contentes com eles mesmos. Fora mesmo das conversações, que amizade, que sociedade no passeio! Um velho, uma criança, mesmo um cão circulam aí à vontade; pelo contrário na rua, os cocheiros injuriam-se, cada um é pressionado por viajantes que não se vêem uns aos outros; o mecanismo não é complicado, mas ele já range. A paz social resultará de relações directas, de mistura de interesses, de trocas directas, não por organizações, que são mecanismos, como sindicatos e corpos constituídos, mas pelo contrário por unidade de vizinhança, nem muito grandes, nem demasiado pequenas. O federalismo por regiões é o verdadeiro.”


Alain
(Tradução de José Ames)

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

NA GRANDE PRADARIA

XXXI


Platão tem contos de ama, que se parecem enfim com todos os contos de ama, mas que por certas palavras lançadas de passagem, ressoam no fundo de nós mesmos, e esclarecem subitamente recantos mal conhecidos. Tal é o conto dum certo Er, que foi tido como morto depois duma batalha, depois veio dos Infernos quando o erro foi reconhecido, e contou o que tinha visto lá em baixo.

Eis qual era a prova mais temível. As almas, ou as sombras, ou como se quiser,  são conduzidas a uma grande pradaria, e lançam-lhes diante delas sacos com os destinos a escolher. Estas almas ainda têm a memória da sua vida passada; escolhem segundo os seus desejos e os seus arrependimentos. Os que desejaram dinheiro mais do que qualquer outra coisa escolhem um destino cheio de dinheiro. Os que tiveram muito procuram mais ainda. Os voluptuosos procuram sacos cheios de prazer; os ambiciosos procuram um destino de rei. Para acabar, cada um encontra aquilo de que precisa, e vão-se, com o seu novo destino ao ombro, beber a água do rio Letes, o que quer dizer o rio do Esquecimento, e partem de novo para a terra dos homens, a fim de viverem conforme a sua escolha.

Eis uma prova singular e uma estranha punição, que é no entanto mais temível do que parece. Porque se encontram  poucos homens que reflictam sobre as verdadeiras causas da felicidade e da infelicidade. Aqueles sobem até à fonte, isto é, até aos desejos tirânicos que derrotam a razão. Aqueloutros desconfiam das riquezas, porque nos tornam sensíveis às lisonjas e surdos aos desgraçados; desconfiam do poder, porque  torna injustos, mais ou menos, todos os que o possuem; desconfiam dos prazeres, porque obscurecem e extinguem enfim a luz da inteligência. Esses sábios vão pois virar prudentemente mais de um saco de bela aparência, sempre preocupados em não perderem o seu equilíbrio e de não arriscarem, num destino brilhante, o pouco de recto sentido que conquistaram e conservaram com tanto labor.  Esses levarão às costas algum destino obscuro que ninguém mais queria.

Mas os outros, que galoparam toda a sua vida atrás do desejo, regalando-se com o que lhes parecia bom, sem olhar além da gamela, esses que quereis que  escolham, senão mais cegueira ainda, mais mentira e injustiça ainda? E assim se castigam eles mesmos, mais duramente do que qualquer juiz os castigaria. Este milionário está agora na grande pradaria, talvez. E que vai ele escolher? Mas deixemos as metáforas; Platão está sempre mais perto de nós do que cremos. Não tenho nenhuma experiência duma nova vida que se seguiria à morte; é portanto dizer muito pouco dizer que não creio nisso; eu nem sequer posso pensar isso, de qualquer maneira que seja. Eu diria antes que a vida futura, em que somos punidos segundo a nossa própria escolha e mesmo segundo a nossa própria lei, é este futuro mesmo para que nós deslizamos sem parar, e onde cada um esvazia o saco que escolheu. E é verdade que não cessamos de beber do rio do Esquecimento, acusando os deuses e o destino. Aquele que escolheu a ambição não cria ter escolhido a baixa lisonja,  inveja, injustiça; mas estava no saco.


Alain
(Tradução de José Ames)

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

A FORÇA DO ESQUECIMENTO

XXX


Esse método de polícia, que consiste em curar um bêbedo pelo juramento, traz a marca da acção; um teórico não se teria fiado nisso; porque, aos seus olhos,  os hábitos e os vícios estão solidamente definidos e estabelecidos. Reflectindo segundo as ciências das coisas, ele pretende que todo o homem transporta consigo as suas maneiras de agir, como propriedades, a exemplo do ferro e do enxofre. Mas eu creio antes que as virtudes e os vícios, muitas vezes, não têm mais a ver com a nossa natureza do que o facto de ser martelado ou laminado tem a ver com a natureza do ferro, ou com a natureza do enxofre   estar em pólvora ou em canhões.

No caso do bêbedo vejo bem a razão disso; é o hábito aqui que faz a necessidade; porque beber o que ele bebe dá sede e retira a razão. Mas a primeira causa de beber é bem fraca; um juramento pode anulá-la; e a partir deste pequeno esforço de pensamento, eis o nosso homem tão sóbrio como se só tivesse bebido água desde há vinte anos. O contrário também se vê; eu sou sóbrio, mas tornar-me-ia logo bêbedo e sem esforço. Já gostei do jogo; tendo mudado as circunstâncias, nunca mais pensei nisso; se me aplicasse, gostaria ainda. Há obstinação nas paixões e talvez sobretudo um erro desmedido; nós cremo-nos apanhados, Aqueles que não gostam de queijo não o querem provar, porque crêem que não vão gostar. Muitas vezes um celibatário crê que o casamento lhe seria insuportável. Um desespero traz consigo infelizmente uma certeza, digamos uma forte afirmação, que leva a que se repudie o abrandamento. Esta ilusão, porque creio que é uma, é muito natural; julgamos mal do que não se tem. Enquanto eu beber, não posso conceber a sobriedade; repudio-a pelos meus actos.  A partir do momento em que não beba, repudio só por isso a bebedice. É o mesmo quanto à tristeza, o jogo, tudo.

Ao aproximar-se uma mudança de casa dizeis adeus às paredes que ides deixar; o  mobiliário ainda não está na rua e já amais o outro alojamento; o velho alojamento é esquecido. Tudo é depressa esquecido; o presente tem a sua força e a sua juventude, sempre; e acomodamo-nos com um movimento seguro. Cada um já experimentou isso e ninguém acredita. O hábito é uma espécie de ídolo, que tem poder pela nossa obediência; e é o pensamento aqui que nos engana; porque o que nos é impossível de pensar parece-nos impossível de fazer. A imaginação conduz o mundo dos homens, por isto que ela não pode libertar-se do costume; e seria preciso dizer que a imaginação não sabe inventar; mas é a acção que inventa.

O meu avô, pelos seus setenta anos, enjoou os alimentos sólidos, e viveu de leite durante cinco anos pelo menos. Dizia-se que era mania; dizia-se bem. Vi-o um dia num jantar de família atacar subitamente uma coxa de frango; e viveu ainda seis ou sete anos, comendo como vós e eu. Acto de coragem, decerto, mas que afrontava ele? A opinião, ou melhor a opinião que ele tinha da opinião, ou melhor a opinião que tinha de si próprio. Feliz natureza, dir-se-á. Mas não. Todos são assim, só que não o sabem; e cada um segue a sua personagem.


Alain
(Tradução de José Ames)

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

DO DESTINO

XXIX


O Destino, dizia Voltaire, conduz-nos e troça de nós.” Esta frase espanta-me num homem destes que foi tão bem ele mesmo. O destino exterior age por meios violentos; é claro que a pedra ou o obus esmagará também um Descartes. Essas forças podem  apagar-nos todos da terra num momento. Mas o acontecimento, que mata tão facilmente um homem, não consegue mudá-lo. Admiro como os indivíduos vão ao seu fim, e como aproveitam tudo; como um cão, da galinha que come, faz carne de cão e gordura de cão, assim o indivíduo digere o acontecimento. Esta constância no querer, que é própria das naturezas fortes, acaba sempre por encontrar passagem, na mudança de todas as coisas, em que há de tudo. O próprio do homem forte é marcar todas as coisas com o seu selo. Mas esta força é mais comum do que se crê. Tudo é vestuário para o homem, e as dobras seguem a forma e o gesto. Uma mesa, um escritório, um quarto, uma casa são prontamente arranjadas ou desarranjadas conforme a mão. Os negócios continuam, grandes ou pequenos; e nós dizemos que são felizes ou infelizes segundo o juízo exterior; mas o homem que os conduz bem ou mal faz sempre o seu buraco segundo a sua forma, como o rato. Olhai bem: ele fez o que quis.

“O que a juventude deseja, tem a velhice em abundância.” É Goethe que cita este provérbio no começo das suas memórias. E Goethe é um brilhante exemplo dessas naturezas que afeiçoam todo o acontecimento segundo a sua própria fórmula. Nem todo o homem é Goethe, é verdade; mas todo o homem é ele próprio. A marca não é boa, seja; mas ele deixa-a em todo o lado. O que ele quer não é qualquer coisa de muito elevado; mas o que quer, ele tem-no. Este homem, que não é Goethe, também não o queria ser. Spinoza, que apreendeu melhor do que ninguém estas naturezas crocodilinas, invencíveis, diz que o homem não tem necessidade da perfeição do cavalo. Da mesma maneira, nenhum homem tem necessidade da perfeição de Goethe. Mas o comerciante, onde quer que esteja, e igualmente sobre ruínas, o comerciante vende e compra, o banqueiro empresta, o poeta canta, o preguiçoso dorme. Muitas pessoas queixam-se de não terem isto ou aquilo; mas a causa é sempre que elas não o desejaram verdadeiramente. Este coronel, que vai plantar as suas couves, bem quis ser general; mas se eu pudesse procurar na sua vida, aperceber-me-ia dalguma pequena coisa que era preciso fazer, e que ele não fez, que não quis fazer. Provar-lhe-ei que ele não queria ser general.

Vejo pessoas, que, com meios bastantes, apenas alcançaram um magro e pequeno posto. Mas que queriam elas? O seu falar aberto? Elas têm-no. Não lisonjear? Elas não lisonjearam nem lisonjeiam. Poder pelo juízo, pelo conselho, pela recusa? Podem. Não têm dinheiro? Mas não desprezaram sempre o dinheiro? O dinheiro vai para aqueles que lhe fazem honras. Encontrai-me um só homem que tenha querido enriquecer e que o não tenha podido. Digo que tenha querido. Esperar não é querer. O poeta espera cem mil francos; não sabe de quem nem como; não faz o mais pequeno movimento para estes cem mil francos;  também não os tem. Mas faz belos versos. Também os faz. Belos segundo a sua natureza, como o crocodilo faz  as suas escamas  e o pássaro as suas penas. Pode-se chamar também destino a esta força interior que acaba por encontrar passagem; mas só tem de comum o nome entre esta vida tão bem armada e composta, e essa telha do acaso que matou Pirro. Era o que me exprimia um sábio, dizendo que a predestinação de Calvino não se parecia nada mal com a própria liberdade.


Alain
(Tradução de José Ames)

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

DISCURSO AOS AMBICIOSOS

XXVIII


Cada um tem aquilo que quer. A juventude engana-se aqui porque só sabe desejar e esperar o maná. Ora, não cai nenhum maná; e todas as coisas desejadas são como a montanha, que espera e que não se pode falhar. Mas é preciso trepar. Todos os ambiciosos que vi partirem dum pé firme, vi-os também alcançar, e mesmo mais depressa do que eu pensava. É verdade que nunca diferiram uma manobra útil, nem deixaram de ver regularmente aqueles de que pensavam servir-se, nem de negligenciar esses inúteis que só sabem ser agradáveis. Enfim, eles adularam quando foi preciso. Não os censuro; é uma questão de gosto. Só que se vos pondes a dizer verdades desagradáveis ao homem que vos pode abrir  os caminhos, não digais que queríeis passar; sonháveis que passáveis, como  sonhamos às vezes que somos pássaros. É como se sonhásseis  em ser ministro sem o aborrecimento das audiências, e sem tratar de nada. Conheci um bom número destes preguiçosos que dizem: “ Eles vêm-me buscar; nem vou mexer um dedo.” É que eles querem no fundo ser deixados em paz, e deixam-nos. Por isso não são tão infelizes como gostariam de crer. Os ingénuos são aqueles que fazem subitamente dez diligências em dois dias, visando de repente uma rica presa, como o milhafre. Não há nada a esperar destas expedições muito mal preparadas. Já vi homens de mérito atacarem assim  cofres-fortes com as unhas. Donde se diz algumas vezes que a sociedade é bem injusta; no que se é bem injusto. A sociedade não dá nada àquele que não pede nada, entenda-se, com constância e continuidade; e isso não está mal, porque os conhecimentos e as aptidões de espírito não são tudo. Alguns entenderiam a política, mas  fazem ver, no entanto, por nada procurarem, que a sujeira do ofício, todos a têm, não é do seu agrado. E que interessa então que tenham ciência e juízo, se não gostam do ofício? Barrès recebia, comentava, recordava-se. Não sei se era próprio para a grande política; mas certamente gostava do ofício.

Volto a dizer que todos aqueles que querem enriquecer o conseguem. Isso escandaliza todos os que sonharam ter dinheiro, e que nunca o tiveram. Olharam a montanha, mas ela esperava-os. O dinheiro, como toda a vantagem, quer primeiro fidelidade. Muitos imaginam que querem ganhar simplesmente porque têm necessidade de ganhar. Mas o dinheiro afasta-se  dos que o procuram somente por necessidade. Os que fizeram fortuna pensaram em ganhar em cada coisa. Mas o que procura um comércio bonito, agradável, como uma amizade, onde se seguiria o gosto e a fantasia, onde se seria fácil e mesmo generoso, esses evaporam-se como a chuva sobre o pavimento quente. É preciso rigor, é preciso coragem; enfim dar provas na dificuldade, como os antigos cavaleiros. O mercúrio não se une tão depressa ao ouro como o lucro ao que faz as contas todos os dias e a todas as horas. Mas o amante frívolo é julgado. Quem quer gastar não ganhará. É justo, porque o que ele quer é gastar e não ganhar. Conheci um amador de agricultura, que semeava por prazer, e de alguma maneira por higiene. Ele só não queria perder; mas este equilíbrio não se encontra nunca. Arruinou-se e muito bem. Há uma avareza dos velhos, e mesmo dos mendigos, que é mania; mas a avareza do comerciante é do próprio ofício. Quando se quer ganhar, tem que se querer também os meios, quer dizer fazer somas de pequenos proveitos. Ou então é trepar sem ver cada passo que se faz; ora nem toda a pedra é boa, e a gravidade não nos larga nunca. Ruína é uma bela palavra; porque a perda está pendurada ao comerciante e puxa-o sempre. Quem não sente em si este outro género de gravidade perde o seu tempo.


Alain
(Tradução de José Ames)