quarta-feira, 28 de março de 2012

O EGOÍSTA

XLV


Um dos erros das nossas religiões ocidentais, como o nota Auguste Comte, é terem ensinado que o homem é egoísta sempre e sem remédio, salvo algum socorro divino. Esta ideia infectou tudo, e até a devoção, de tal maneira que entre as ideias mais populares, e igualmente entre os espíritos mais livres, se encontra esta estranha  opinião, de que aquele que se sacrifica procura ainda o seu prazer. “Um ama a guerra; o outro a justiça; eu gosto do vinho.” O próprio anarquista é teólogo; a revolta responde à humilhação; tudo isso é da mesma pipa.

De facto, dever-se-ia ver que o homem ama mais comummente a acção do que o prazer, como os jogos da juventude o mostram bem. Porque, o que é um jogo de bola, sem  encontrões, socos e pontapés, e enfim nódoas negras e compressas? Mas tudo isso é ardentemente desejado; tudo isso é recolhido pela recordação, pensa-se nisso com entusiasmo, as pernas querem já correr. E é a generosidade que agrada, ao ponto de se desprezarem os golpes, a dor, a fadiga. Dever-se-ia também considerar a guerra, que é um jogo admirável, e que mostra mais generosidade do que ferocidade; porque o que é sobretudo feio na guerra, é a escravatura que a prepara e a escravatura que se lhe segue. A desordem das guerras, em suma, é que os melhores nela se fazem matar e que os hábeis nela encontram ocasião de governar contra a justiça. Mas o juízo instintivo confunde-se ainda aqui;  e às pessoas simples como Déroulède agrada-lhes ser enganadas.

Tudo isso é belo de considerar. O egoísta em vão troça, porque quer submeter os sentimentos generosos ao cálculo dos prazeres e das penas. “Que tolos sois que amais a glória, e ainda para os outros!” E Pascal, o génio católico, Pascal escreveu esta frase, onde não há mais do que a aparência da profundidade: “Perdemos a vida com alegria, desde que se fale disso.” É o mesmo homem que troçou do caçador que se esforça tanto por apanhar uma lebre, que não queria se lha dessem. É preciso que o preconceito teológico seja muito forte para esconder aos olhos humanos que o homem ama a acção mais do que o prazer, a acção regulada  e disciplinada mais do que qualquer outra acção, e a acção pela justiça acima de tudo. Donde resulta um imenso prazer, sem dúvida; mas o erro é de crer que a acção corre ao prazer; porque o prazer acompanha a acção. Os prazeres do amor fazem esquecer o amor do prazer. Eis como é construído este filho da terra, deus dos cães e dos cavalos.

O egoísta, pelo contrário, falha o seu destino por um erro de juízo. Não quer avançar um dedo se não perceber um belo prazer para agarrar; mas neste cálculo, os verdadeiros prazeres primeiro querem esforço; é por isso que, nos  cálculos da prudência, as dores levam sempre a melhor; o medo é sempre mais forte do que a esperança e o egoísta acaba por considerar a doença, a velhice, a morte inevitável. E o seu desespero prova-me que ele se compreendeu mal a si mesmo.


Alain
(Tradução de José Ames)

terça-feira, 27 de março de 2012

DIÓGENES

XLIV


O homem só é feliz por querer e inventar. Isso vê-se no jogo de cartas; é claro, pelos rostos, que cada um contempla então a sua própria força de deliberar e de decidir; há os Césares da manilha, e passagens do Rubicão a cada instante. Mesmo nos jogos de azar, o jogador tem todo o poder de arriscar ou de não arriscar; às vezes ousa, qualquer que seja o risco; às vezes abstém-se, qualquer que seja a esperança; governa-se a si mesmo; reina. O desejo e o medo, importunos conselheiros nos assuntos correntes, estão aqui fora do conselho, pela impossibilidade em que nos encontramos de prever. Por isso o jogo é a paixão das almas orgulhosas. Aqueles que se resignam a ganhar obedecendo não concebem sequer o prazer de jogar o bacará; mas se tentarem, conhecerão, pelo menos um curto momento, a embriaguês do poder.

Todos os ofícios agradam enquanto neles se governa, e desagradam quando se obedece. O condutor do carro eléctrico tem menos felicidade do que o motorista do autocarro. A caça livre e solitária dá prazeres vivos, porque o caçador faz o seu plano, segue-o ou então altera-o, sem ter que prestar contas nem explicar as razões. O prazer de matar à frente dos batedores é bem magro em comparação; mas um hábil atirador goza do poder que exerce contra a emoção e a surpresa. Assim, aqueles que dizem que o homem procura o prazer e foge do esforço descrevem-no mal. O homem aborrece-se do prazer recebido e prefere, de muito longe, o prazer conquistado; mas acima de tudo gosta de agir e de conquistar; não gosta de aguentar nem de sofrer; é por isso que escolhe o esforço com a acção em vez do prazer sem a acção. Diógenes o paradoxal gostava de dizer que é o esforço que é bom; queria dizer o esforço escolhido e voluntário; porque, do esforço imposto, ninguém gosta.

O alpinista desenvolve a sua própria força e prova-a a si mesmo; sente-a e pensa-a ao mesmo tempo; esta alegria superior ilumina a paisagem nevada. Mas aquele que um comboio eléctrico levou até ao cimo famoso não pode encontrar o mesmo sol. É por isso que é verdade que as perspectivas do prazer nos enganam; mas enganam-nos de duas maneiras; porque o prazer recebido nunca paga aquilo que prometia, enquanto que o prazer de agir, pelo contrário,  paga sempre mais do que prometia. O atleta exerce-se tendo em vista conquistar a recompensa; mas logo, pelo progresso e pela dificuldade vencida, conquista uma outra recompensa, que está nele e dele depende. E é o que o preguiçoso não pode sequer imaginar; porque só vê a pena e a outra recompensa; ele pesa uma e outra e não se decide; mas o atleta está já de pé e a trabalhar, apoiado no exercício da véspera, e imediatamente gozando a sua própria vontade e força. De tal maneira que só o trabalho é agradável; mas o preguiçoso não sabe isso nem pode sabê-lo; ou então, se o sabe por ouvir dizer ou pela recordação, não pode acreditar; eis por que o cálculo dos prazeres engana sempre, e o aborrecimento vem. Quando o animal pensante se aborrece, a cólera não está longe. Todavia, o aborrecimento de ser servo parece-me menos azedo do que o aborrecimento de ser senhor; porque, por muito monótona que seja a acção, fica sempre um pouco para governar e inventar; enquanto que aquele que recebe os prazeres já feitos é naturalmente mau. Assim o rico governa pelo humor e pela tristeza; a fraqueza do trabalhador vem de que ele se sente mais contente do que queria. Faz de mau.


Alain
(Tradução de José Ames)
                                                                                                         

segunda-feira, 26 de março de 2012

HOMENS DE ACÇÃO

XLIII


Um prefeito da polícia é, para o meu gosto, o homem mais feliz. Porquê? Porque age sempre, e sempre em condições novas e imprevisíveis; ora contra o fogo, ora contra a água; ora contra o desabamento, ora contra o esmagamento; também contra a lama, a poeira, as doenças, a pobreza; enfim muitas vezes também contra a cólera, e algumas contra o entusiasmo. Assim,  em cada minuto da sua vida, este homem feliz se encontra em presença dum problema bem determinado, que exige uma acção bem determinada. Logo, nada de regras gerais; nada de papelada; nada de recriminações nem de consolações em forma de relatório administrativo; ele deixa isso a alguns burocratas. Quanto a ele, é percepção e acção. Ora, quando estas duas válvulas, percepção e acção, estão abertas, um rio de vida transporta o coração do homem como uma pluma ligeira.

Está aí o segredo dos jogos. Jogar o bridge, é fazer correr a vida da percepção à acção. Jogar o futebol, ainda melhor. Sobre um dado novo, imprevisível, desenhar prontamente uma acção, e imediatamente, fazê-la, isso preenche a vida humana tanto quanto se pode desejar. Que quereis desejar então? Que quereis temer? O tempo devora o lamento. Perguntamo-nos muitas vezes qual pode ser a vida interior dum ladrão e de um bandido. Creio que ele não tem nenhuma. Sempre à espreita, ou dormindo. Toda a sua força de previsão é como a do batedor, diante dos seus pés e das suas mãos. É por isso que a ideia da punição não lhe ocorre, nem nenhuma outra. Esta máquina cega e surda tem qualquer coisa de atemorizante. Mas em qualquer homem a acção extingue a consciência; esta violência sem respeito ouve-se  no golpe de machado do lenhador; é menos sensível nas diligências do homem de Estado, mas reencontramo-la frequentemente nos efeitos. Espantar-nos-íamos menos de achar o homem duro e insensível como o machado, se notássemos que ele também não se poupa. A força não tem piedade, nem sequer de si mesma.

Porquê a guerra? Porque os homens se afogam então na acção. O seu pensamento é como as lâmpadas nos carros eléctricos que baixam no arranque; digo o seu pensamento reflectido. Donde uma força temível na acção; ela justifica-se à sua maneira, porque extingue a lâmpada interior. Através do que uma chusma de paixões vis se extinguem, todas aquelas que a reflexão alimenta, como melancolia, desgosto da vida, ou então intriga, hipocrisia, rancor, ou então amor romanesco, ou então vício refinado. Mas também se extingue a justiça na corrente da acção. O prefeito da polícia bate-se contra o motim da mesma maneira que se bate contra a água e o fogo. O amotinado apaga também a sua lâmpada. Noite bárbara. Foi por isso que houve torcionários que se metiam nos cantos, e juízes que recebiam confissões. Foi por isso que houve forçados presos aos bancos, e que ali agonizavam e morriam, acompanhando o movimento dos remos; e outros homens que chicoteavam. Os que chicoteavam só pensavam no seu chicote. Qualquer estado de barbárie durará se se estabelecer. Um prefeito da polícia é o homem mais feliz; não diria que é o mais útil dos homens. A ociosidade é a mãe de todos os vícios, mas de todas as virtudes também.


Alain
(Tradução de José Ames)

sexta-feira, 23 de março de 2012

AGIR

XLII


Todos os corredores se esforçam bastante. Todos os  jogadores de futebol se esforçam bastante. Todos os pugilistas se esforçam bastante. Lê-se em todo o lado que os homens procuram o prazer; mas isso não é evidente; parece até que eles procuram o esforço e que amam o esforço. O velho Diógenes dizia: “ O que há de melhor é o esforço.” Sobre isso dir-se-á que todos eles encontram o prazer nesse esforço que procuram; mas é jogar com as palavras; é felicidade e não prazer que seria preciso dizer; são duas coisas muito diferentes, tão diferentes quanto a escravatura e a liberdade.

Quer-se agir e não sofrer. Todos os homens que se esforçam tanto não gostam, sem dúvida, do trabalho forçado; ninguém gosta do trabalho forçado; ninguém gosta dos males que caem; ninguém gosta de sentir a necessidade. Mas logo que me esforço livremente, eis-me contente. Eu escrevo estes textos. “Ora aí está um grande esforço”, dirá algum escritor que vive da sua pena; só que ninguém me  força a escrevê-los; e este trabalho voluntário é um prazer, ou uma felicidade, para melhor dizer. O pugilista não gosta dos golpes que vêm ao seu encontro, mas gosta daqueles que procura. Não há nada de tão agradável como uma vitória difícil, quando o combate depende de nós. No fundo, só se gosta da força. Pelos monstros que procurava e esmagava, Hércules provava a sua força a si mesmo. Mas logo que se sentiu enamorado, sentiu a sua própria escravatura e a força do prazer; todos os homens são assim; e é por isso que  o prazer os torna tristes.

O avarento priva-se de muitos prazeres, e dá-se um vivo prazer, primeiro triunfando sobre os prazeres, e também acumulando força; mas ele quer devê-la a si mesmo. Aquele que se torna rico por herança é um avarento triste, se é avaro; porque toda a felicidade é poesia essencialmente, e poesia quer dizer acção; não se gosta nada dum prazer que vos cai, quer-se tê-lo feito. A criança troça dos nossos jardins, e faz um belo jardim para si, com montes de areia e fios de palha. Imaginais um coleccionador que não tivesse feito a sua colecção?

Creio bem que o que agrada na guerra, é que a fazemos. Há uma liberdade evidente em cada homem, logo que está armado; e riríamos dum estado-maior que quisesse forçar os homens a bater-se. Mas logo que eles sentem a liberdade, entram numa vida nova e ganham-lhe o gosto. Recear a morte, é sempre preciso, e esperá-la, e enfim sofrê-la. Mas o que vai à frente dela e de alguma maneira a chama em campo fechado, esse sente-se mais forte do que ela. Toda a gente sabe bem que é mais fácil aos soldados  ir procurá-la do que esperá-la; e ama-se mais o destino que se faz do que aquele que o tempo traz. Há portanto uma poesia na guerra que leva até a que não se odeie o inimigo. É esta embriaguês da liberdade que faz compreender a guerra e todas as paixões. Uma peste é imposta; uma guerra é como que inventada, à maneira dos jogos. É por isso que me parece que a prudência não é uma garantia de paz suficiente; é por amor da justiça que se suporta a paz; e é porque a justiça é difícil de fazer, mais difícil do que uma ponte ou do que um túnel, é por isso que a paz será; só por isso.


Alain
(Tradução de José Ames)

quinta-feira, 22 de março de 2012

ESPERANÇA

LXI


Um incêndio fazia-me pensar no Seguro. Eis um deus que não é amado, e longe disso, como a Fortuna. É temido; trazem-lhe magras oferendas, sem nenhum entusiasmo. E isso é fácil de compreender; os benefícios do seguro só se mostram ao mesmo tempo que a desgraça. O maior bem é evidentemente não ter o fogo em casa; mas é um bem de todos os minutos, que não se sente, como o de ter os seus braços e as suas pernas. Tendo em conta esta felicidade negativa, o dinheiro com o qual se paga parece tolamente dado. Só vejo as grandes empresas pagarem o prémio sem tristeza, como pagam tudo; mas lastimo também esses capitães do comércio que não sabem ao fim do dia se perderam ou ganharam; sem dúvida o seu prazer real vem do poder que eles exercem sobre um exército de caixeiros.

Aqueles que têm grandes esperanças e pequenos meios não podem amar o seguro. Imagina-se um comerciante que se segurasse contra a ruína? Nada seria mais fácil se eles pusessem todos em comum os lucros que ultrapassam o ordinário. Assim, as casas associadas prosperariam, no conjunto, passavelmente; os comerciantes associados seriam como funcionários, com um vencimento fixo  e uma reforma assegurados; se quisessem, assegurados dum médico, dum cirurgião, duma casa de convalescença; assegurados duma viagem de núpcias e duma série de viagens de prazer. É a própria sabedoria; e é muito belo nos livros. Mas é preciso não esquecer que, quando a vida material está assim assegurada, no pleno sentido da palavra, toda a felicidade está por fazer. Quem não tem em si os recursos, o aborrecimento espreita-o e em breve toma conta dele.

A deusa Lotaria, que os antigos chamavam a Fortuna cega, é muito mais ternamente adorada. Aqui esperanças imensas e, em compensação, o único receio de não ganhar, que não é nada. Se se imagina um escritório de todos os seguros, seria preciso escrever na porta: “Vós que entrais, abandonai toda a esperança.” Contra o que todos os comerciantes de esperança facilmente triunfam. O que não vem só da ambição, que é vaidade no fundo, mas antes  desta invenção infatigável que vai sempre à frente da acção, e que é luz e alegria em todo o ofício. Perrette na sua vasilha de leite não vê repouso nenhum, mas, ao contrário, o trabalho. Vitelo, vaca, porco, ninhada, são cuidados. Cada um, nos seus trabalhos de todos os dias, descobre outros sobre os quais  gostaria de se lançar. A esperança abate o muro e percebe a ordem dos legumes ou a ordem das flores em lugar da erva daninha e do matagal. O seguro aprisiona.

A paixão do jogo é admirável de considerar. O homem debate-se aí com um acaso despojado, um acaso que se quis e se inventou. Há um seguro gratuito contra  os riscos do jogo; basta não jogar. Mas quase todos aqueles que conhecem o ócio se lançam sobre as cartas ou os dados, adorando as irmãs gémeas e inseparáveis, a esperança e o medo. E talvez que o homem esteja mais orgulhoso de ter ganho  por um feliz acaso do que de ter bem jogado. O que exprime a palavra felicitar; porque felicitar é propriamente louvar o sucesso, e não o mérito. Antiga ideia do favor dos deuses, que  sobreviveu aos deuses.  Se o homem não fosse assim, a justiça igualitária reinaria há muito tempo, porque não é difícil. Mas o homem detesta o que não é difícil. César reina pela ambição de todos; é a nossa esperança coroada.


Alain
(Tradução de José Ames)