XLV
Um dos erros das nossas religiões ocidentais, como o nota
Auguste Comte, é terem ensinado que o homem é egoísta sempre e sem remédio,
salvo algum socorro divino. Esta ideia infectou tudo, e até a devoção, de tal
maneira que entre as ideias mais populares, e igualmente entre os espíritos
mais livres, se encontra esta estranha
opinião, de que aquele que se sacrifica procura ainda o seu prazer. “Um
ama a guerra; o outro a justiça; eu gosto do vinho.” O próprio anarquista é teólogo;
a revolta responde à humilhação; tudo isso é da mesma pipa.
De facto, dever-se-ia ver que o homem ama mais comummente
a acção do que o prazer, como os jogos da juventude o mostram bem. Porque, o
que é um jogo de bola, sem encontrões,
socos e pontapés, e enfim nódoas negras e compressas? Mas tudo isso é
ardentemente desejado; tudo isso é recolhido pela recordação, pensa-se nisso
com entusiasmo, as pernas querem já correr. E é a generosidade que agrada, ao
ponto de se desprezarem os golpes, a dor, a fadiga. Dever-se-ia também
considerar a guerra, que é um jogo admirável, e que mostra mais generosidade do
que ferocidade; porque o que é sobretudo feio na guerra, é a escravatura que a
prepara e a escravatura que se lhe segue. A desordem das guerras, em suma, é
que os melhores nela se fazem matar e que os hábeis nela encontram ocasião de
governar contra a justiça. Mas o juízo instintivo confunde-se ainda aqui; e às pessoas simples como Déroulède
agrada-lhes ser enganadas.
Tudo isso é belo de considerar. O egoísta em vão troça,
porque quer submeter os sentimentos generosos ao cálculo dos prazeres e das
penas. “Que tolos sois que amais a glória, e ainda para os outros!” E Pascal, o
génio católico, Pascal escreveu esta frase, onde não há mais do que a aparência
da profundidade: “Perdemos a vida com alegria, desde que se fale disso.” É o
mesmo homem que troçou do caçador que se esforça tanto por apanhar uma lebre,
que não queria se lha dessem. É preciso que o preconceito teológico seja muito
forte para esconder aos olhos humanos que o homem ama a acção mais do que o
prazer, a acção regulada e disciplinada
mais do que qualquer outra acção, e a acção pela justiça acima de tudo. Donde
resulta um imenso prazer, sem dúvida; mas o erro é de crer que a acção corre ao
prazer; porque o prazer acompanha a acção. Os prazeres do amor fazem esquecer o
amor do prazer. Eis como é construído este filho da terra, deus dos cães e dos
cavalos.
O egoísta, pelo contrário, falha o seu destino por um erro
de juízo. Não quer avançar um dedo se não perceber um belo prazer para agarrar;
mas neste cálculo, os verdadeiros prazeres primeiro querem esforço; é por isso
que, nos cálculos da prudência, as dores
levam sempre a melhor; o medo é sempre mais forte do que a esperança e o
egoísta acaba por considerar a doença, a velhice, a morte inevitável. E o seu
desespero prova-me que ele se compreendeu mal a si mesmo.
Alain
(Tradução de José Ames)