LXXXVII
Desde que um homem procura a felicidade, é condenado a não
a encontrar, e não há mistério nisso. A felicidade não é como esse objecto na
vitrina, que se pode escolher, pagar, levar; se o olhardes bem, será azul ou vermelho em vossa casa como na
vitrina. Enquanto que a felicidade só é felicidade quando se a tem; se a procurais
no mundo, fora de vós mesmos, nada terá
jamais o aspecto da felicidade. Em resumo, não se pode arrazoar nem prever a respeito da felicidade; é preciso tê-la
agora. Quando parece estar no futuro, pensai bem, é que já a tendes. Esperar, é
ser feliz.
Os poetas explicam muitas vezes mal as coisas; e eu
compreendo-o bem; têm tanta dificuldade em ajustar as sílabas e as rimas que
estão condenados a ficar pelos lugares comuns. Eles dizem que a felicidade
resplandece enquanto está ao longe e no futuro, e que, quando a temos, já não é
nada de bom; como se se quisesse agarrar o arco íris, ou segurar a fonte no oco
da sua mão. Mas é falar grosseiramente. É impossível perseguir a felicidade,
senão em palavras; e o que sobretudo entristece aqueles que procuram a
felicidade à sua volta, é que não chegam nunca a desejá-la. Jogar ao
bridge, não me diz nada, porque não jogo. O boxe e a esgrima, é o mesmo. A
música, do mesmo modo, só pode agradar àquele que venceu primeiro certas
dificuldades; a leitura, a mesma coisa. É preciso coragem para entrar em
Balzac; começamos por nos aborrecer. O gesto do leitor preguiçoso é bem
divertido; ele folheia, lê algumas linhas, deixa o livro; a felicidade de ler é
de tal modo imprevisível que um leitor exercitado se espanta ele mesmo. A
ciência não agrada em perspectiva; é preciso entrar nela. E é preciso um
constrangimento no início e uma dificuldade sempre. Um trabalho regulado e vitórias atrás de vitórias, eis sem dúvida
a fórmula da felicidade. E quando a acção é comum, como no jogo de cartas, ou
na música, ou na guerra, é então que a felicidade é viva.
Mas há felicidades solitárias que trazem sempre as mesmas
marcas, acção, trabalho, vitória; assim é a felicidade do avarento ou do
coleccionador, que, de resto, se assemelham muito. Donde vem que a avareza é
tomada por um vício, sobretudo se o avarento acaba por se deter nas velhas moedas de oiro, enquanto
que se admira até aquele que põe em
vitrina esmaltes, marfins, ou pinturas, ou livros raros? Faz-se pouco do
avarento que não quer trocar o seu oiro por outros prazeres, enquanto que há
coleccionadores de livros que nunca os lêem, com medo de os sujar. Na verdade,
essas felicidades, como todas as felicidades, são impossíveis de gozar de
longe; é o coleccionador que ama os selos do correio, e eu não compreendo nada
disso. Da mesma maneira, é o pugilista que ama o boxe e o caçador que ama a
caça, e o político que ama a política. É na acção livre que se é feliz; é pela
regra que nos damos que somos felizes; pela disciplina aceite, numa palavra,
seja no jogo de futebol, seja no estudo das ciências. E estas obrigações,
vistas de longe, não agradam, mas pelo contrário desagradam. A felicidade é uma
recompensa que vai para aqueles que não a procuraram.
Alain
(Tradução de José Ames)
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