terça-feira, 31 de janeiro de 2012

SOBRE A MORTE

xv


A morte de um homem de estado é uma ocasião para meditar; e vêem-se por todo o lado teólogos dum momento. Cada um volta-se para si próprio e para a comum condição; mas este pensamento não tem objecto; só nos podemos pensar enquanto vivos. Donde uma impaciência. Diante desta ameaça abstracta e de todo informe, não sabemos o que fazer. Descartes dizia que a irresolução é o pior dos males. Pois bem, eis-nos para aí lançados, e sem nenhum remédio. Os que se vão enforcar estão melhor colocados; escolhem o prego e a corda; tudo depende deles até ao último salto. E, como o gotoso está ocupado em colocar bem a sua perna, assim cada estado, por muito mau que seja, reclama algum cuidado real e alguma tentativa. Mas o estado dum homem com saúde que pensa na morte é quase ridículo, por este risco indeterminado. Esta curta agitação completamente sem regra, e que em breve seria sem medida, é a paixão nua. O jogo de cartas, à falta de melhor,  oferece felizmente ao activo pensador problemas bem definidos, apostas a fazer, e prazos próximos.

O homem é corajoso; não na ocasião, mas essencialmente. Agir, é ousar. Pensar, é ousar. O risco está em todo o lado; isso não amedronta o homem. Vede-lo procurar a morte e desafiá-la; mas ele não sabe esperar. Todos os que estão desocupados são por de mais guerreiros pela impaciência. Não é que eles queiram morrer, mas é antes que eles querem viver. E a verdadeira causa da guerra é certamente o aborrecimento dum pequeno número, que gostaria de riscos bem claros, e procurados mesmo e definidos como nas cartas. E não é por acaso que aqueles que trabalham com as suas mãos são pacíficos; é também porque eles são vitoriosos de momento a momento. A sua própria experiência é plena e afirmativa. Não param de vencer a morte, e tal é a verdadeira maneira de pensar nela. O que ocupa o soldado, não é esta condição abstracta de estar sujeito à morte, mas tal perigo e depois outro. Podia muito bem ser que a guerra fosse o único remédio para a teologia dialéctica. Todos estes comedores de sombras acabam sempre por nos conduzir à guerra, porque não há no mundo nada além do perigo real que nos cure do medo.

Vede até um doente, como fica logo curado, pela doença, do medo de ficar doente. É sempre o imaginário que é o nosso inimigo. Porque não vemos nada aí que agarrar. Que fazer contra suposições? Acontece que um homem se encontra arruinado; imediatamente ele vê mais duma coisa para fazer, e premente; assim reencontra a sua vida intacta. Mas um homem que receia ficar arruinado e miserável, só porque imagina a revolução, as surpresas do câmbio, a queda do seu papel, que pode fazer? Que pode ele querer? Qualquer que seja a ideia que lhe venha é logo negada pela ideia contrária, porque os possíveis não têm limites; assim os males renascem sempre, sem nenhum progresso. Todas as suas acções são começos que se entrecortam e  enlaçam. Creio que não há outra coisa no medo senão uma agitação sem resultado, e que a meditação aumenta sempre o medo. Os homens temem a morte quando pensam nela; creio bem que sim; mas o que é que eles não temem, quando pensam sem fazer? O que é que não receiam quando o pensamento se perde em simples possibilidades? Pode-se ter uma cólica só por pensar num exame. Não podíamos pensar, face a este movimento das entranhas, que algum ferro as ameaça? Mas não. É a irresolução, pela ausência de objecto, que lhes ateia o fogo no ventre.

Alain
(Tradução de José Ames)

20 de Agosto de 1923

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

DRAMAS

XIV


Os que escaparam desse grande naufrágio têm recordações terríficas. Essa muralha de gelo que aparece na escotilha, essa hesitação e essa esperança dum momento; depois o espectáculo da grande construção iluminada sobre o mar tranquilo; depois a proa que se afunda, as luzes que se apagam de repente; os gritos, imediatamente, de mil e oitocentas pessoas; a popa do navio erigindo-se como uma torre, e as máquinas caindo sobre a proa com o ruído de cem trovões; enfim esse grande caixão deslizando águas abaixo sem remoinhos; a noite fria reinando na solidão; depois disso o frio, o desespero, e enfim a salvação. Drama refeito muitas vezes durante essas noites em que não pregaram olho; em que as recordações estão agora ligadas; em que cada parte toma um significado trágico, como numa peça bem composta.

Quando o dia se ergue no castelo, em Macbeth, há um porteiro que olha o dia que nasce e as andorinhas; quadro cheio de frescura e de simplicidade e de pureza; mas nós sabemos que o crime foi cometido. O horror trágico está aqui no seu cúmulo. Da mesma maneira, nas recordações do naufrágio, cada momento é esclarecido pelo que se vai seguir. Assim a imagem desta construção toda iluminada, tranquila, sólida sobre o mar, era reconfortante no momento; na recordação, nos sonhos que se vão ter, na imagem que eu me faço, é o momento duma espera horrível. O drama desenrola-se agora para um espectador que sabe, que compreende, que degusta a agonia minuto a minuto; mas, na acção mesma, este espectador não existe. Falta a reflexão; as impressões mudam ao mesmo tempo que o espectáculo; e melhor dizendo, não há espectáculo, mas somente percepções inesperadas, não interpretadas, mas ligadas, e sobretudo acções que submergem os pensamentos, um naufrágio de pensamentos a cada instante; cada imagem aparece e morre. O acontecimento matou o drama. Os que morreram não sentiram nada.

Sentir, é reflectir, é recordar-se. Cada um pôde observar a mesma coisa, nos pequenos e grandes acidentes; a novidade, o inesperado, a acção premente ocupam toda a atenção, sem nenhum sentimento; aquele que tenta, com toda a sinceridade, reconstituir o próprio acontecimento, gostaria de dizer que vive como num sonho, sem compreender, sem prever; mas o terror que ele experimenta agora ao pensar nisso arrasta-o para uma narração dramática. É assim nos grandes desgostos, quando se acompanha a doença de alguém até à sua morte. Ficamos como que estúpidos e inteiramente entregues às acções  e às percepções de cada momento. Mesmo se se dá aos outros a imagem do terror e do desespero, não é nesse momento que se sofre. E aqueles que demasiado pensaram nas suas penas, quando as contam para fazer chorar os outros, encontram ainda nessa acção um pequeno alívio.

Sobretudo, quaisquer que possam ter sido os sentimentos daqueles que morreram, a morte tudo apagou; antes que tivéssemos aberto o nosso jornal, o seu suplício já tinha findado; estavam curados. Ideia familiar a todos, que me faz pensar  que não se crê realmente numa vida depois da morte. Mas, na imaginação dos sobreviventes, os mortos nunca param de morrer.


Alain
(Tradução de José Ames)



sábado, 28 de janeiro de 2012

ACIDENTES

XIII


Cada um já meditou algum momento sobre a temível queda. A enorme viatura perdeu uma roda e inclinou-se primeiro muito lentamente talvez; e esses infelizes,  um momento suspensos acima do abismo, gritaram duma forma inumana. Cada um imagina muito facilmente a cena, e alguns, em sonho,  experimentarão esse começo de queda e a espera do choque. Mas é porque eles têm tempo para deliberar; eles mimam a coisa; saboreiam o medo; param de cair para pensar nisso. Uma mulher disse-me um dia: "Eu que tenho medo de tudo, tenho de morrer um dia.” Felizmente, a força das coisas, quando nos agarra, não nos dá nenhuma pausa; a cadeia dos instantes é como que rompida; assim o extremo sofrimento não é mais do que poeira de sofrimento; impalpável. O horror é soporífero. O clorofórmio, segundo a verosimilhança,  adormece só a parte mais alta do pensamento; a multidão dos órgãos agita-se e sofre para si; mas a soma não é de todo feita. Toda a dor quer ser contemplada, ou então não é em nada sentida. O que é um mal de um milésimo de segundo e imediatamente esquecido? A dor, como a dor de dentes, supõe que se preveja, que se espere, que se estenda algum tempo à frente ou atrás do presente; só o presente, é como nulo. Receamos mais do que aquilo que sofremos.

Estas observações, que são o tema de toda a consolação verdadeira, se fundam sobre uma exacta análise da própria consciência. Mas a imaginação fala alto; o seu jogo é compor o horror. Era preciso alguma experiência. Todavia a experiência não falta completamente. Aconteceu-me um dia, no teatro,  ser levado dez metros para lá do meu lugar por um curto pânico; só foi preciso um cheiro a queimado e algum movimento de fuga, logo imitado.  Ora, o que há de mais horrível que ser apanhado numa torrente humana e  ser arrastado não se sabe para o quê, nem porquê? Mas eu não soube de nada, nem no momento mesmo, nem por reflexão. Simplesmente, fui deslocado; e como não tinha que deliberar, não houve qualquer pensamento. A previsão, a recordação, tudo faltou à vez; assim não houve percepção nem sequer sentimento, mas antes um sono de alguns segundos.

Na noite em que parti para a guerra, nesse triste vagão cheio de boatos, de contos apaixonados e de loucas imagens, era assaltado por pensamentos pouco agradáveis.  Estavam lá alguns fugitivos de Charleroi que tinham tido o vagar de ter medo. Para cúmulo, encontrava-se num canto uma espécie de morto muito branco, com a cabeça enfaixada. Essa visão dava realidade aos terríveis quadros de batalha. “Eles vinham sobre nós, dizia o narrador, como formigas, o nosso fogo não deteve nada.” As imaginações estavam derrotadas. Felizmente o morto falou, e contou-nos como tinha sido morto na Alsácia, dum estilhaço atrás da orelha; mal já não imaginário, mas verdadeiro. “ Nós corríamos, disse, a coberto duma mata. Eu desemboco; mas a partir daí já não sei o que dizer; é como se o ar livre me tivesse  adormecido de repente, e eu acordei numa cama de hospital, onde me disseram que me tinham tirado da cabeça um estilhaço grande como o dedo polegar.” Assim fui reconduzido dos males imaginários aos males reais por este outro Er escapado dos infernos; e suspeitei que os maiores males são de pensar mal. O que não me curou completamente de imaginar o choque brutal e o estrépito dos ossos quebrados na minha cabeça. Mas já é qualquer coisa saber que nunca se imaginam os males como eles são.           
                                                           
        Alain
(Tradução de José Ames)                                                          
22 de Agosto de 1923

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O SORRISO

XII


Queria dizer do mau humor que ele não é menos causa do que efeito; estava mesmo inclinado a dizer que a maior parte das nossas doenças resultam dum esquecimento da cortesia, quero dizer duma violência do corpo humano sobre si próprio. O meu pai, que pelo seu ofício observava os animais, dizia que, submetidos no entanto às mesmas condições e tanto quanto nós dispostos a abusar delas, eles têm muito menos doenças, e isso espantava-o. É que os animais não têm humor, ou seja esta irritação, ou esta fadiga, ou este aborrecimento que se mantêm pelo pensamento. Por exemplo, cada um sabe que o nosso espírito se escandaliza de não dormir quando  quer, e que, por esta inquietação, se coloca justamente  no caso de não poder dormir. Ou então, doutras vezes, receando o pior, reanima pelas suas fantasias um estado de ansiedade que afasta a cura. Basta a vista duma escada para que o coração se aperte, como se diz tão bem, por um efeito da imaginação que nos corta a respiração, no momento mesmo  em que temos necessidade de respirar amplamente. E a cólera é propriamente falando uma doença, tal qual como a tosse; pode-se mesmo considerar a tosse como um tipo de irritação; porque ela tem de facto a sua causa num estado do corpo; mas logo a imaginação espera a tosse  e até a procura, pela louca ideia de se livrar dela exasperando-a, como fazem aqueles que se coçam. Sei muito bem que os animais também se coçam, e ao ponto de se prejudicarem; mas é um perigoso privilégio do homem o poder, se ouso dizer, coçar-se só pelo pensamento, e directamente, pelas suas paixões, excitar o  coração e empurrar as ondas de sangue aqui e ali.

Passa ainda quanto às paixões; não se livra delas quem quer; só se pode alcançar isso por um longo desvio de doutrina, como aquele que é suficientemente sábio para não procurar as honras, a fim de não ser levado a desejá-las. Mas o mau humor ata-nos, sufoca-nos e estrangula-nos, só por este efeito de que nós nos dispomos segundo um estado do corpo que inclina à tristeza, e de modo a manter esta tristeza. Aquele que se aborrece tem uma maneira de se sentar, de se levantar, de falar, que é adequada a entreter o aborrecimento. O irritado aperta-se de outra maneira; e o desencorajado desaperta, quase diria que desengata os músculos  tanto quanto pode, o mais longe possível de se dar a si próprio através de qualquer acção essa mensagem enérgica de que precisa.

Reagir contra o humor, não é tarefa do juízo; aí não pode nada; mas é preciso mudar a atitude e dar-se o movimento conveniente; porque os nossos músculos motores são a parte de nós sobre a qual temos poder. Sorrir, encolher os ombros, são manobras conhecidas contra as preocupações; e notai que estes movimentos tão fáceis mudam logo a circulação visceral. Podemos espreguiçar-nos voluntariamente e bocejar, o que é a melhor ginástica contra a ansiedade e a impaciência. Mas ao impaciente não ocorrerá mimar assim a indiferença; do mesmo modo não virá ao espírito daquele que sofre de insónia fazer de conta que dorme. Muito pelo contrário, o humor representa-se a si mesmo e assim se entretém. Por falta de sabedoria,  procuramos a cortesia; buscamos a obrigação de sorrir. É por isso que a sociedade dos indiferentes é tão amada.
Alain
(Tradução de José Ames)

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

MEDICINA

XI


“Conheço, diz o homem da ciência, um número importante de verdades, e formo uma ideia suficiente daquelas que ignoro. Sei o que é uma máquina, e como um parafuso que salta pode destruir tudo, por falta de um pouco de cuidado, por falta da atenção de alguns minutos, e sempre porque o homem da arte não foi consultado em tempo oportuno. É por isso que eu reservo uma parte do meu tempo  à vigilância desta máquina complexa a que eu chamo o  meu corpo. É por isso que logo que há um sintoma de fricção ou um rangido, me entrego ao homem da arte para que ele explore a parte doente ou supostamente tal. E através destes cuidados, segundo as advertências do ilustre Descartes, estou seguro, tirando os golpes da sorte, de prolongar a minha vida tanto quanto o permite o instrumento que  recebi dos meus pais. E eis a minha sabedoria.” Ele falava assim, mas vivia tristemente.

“Conheço, diz o leitor, um número importante de ideias falsas que complicaram a vida dos homens em tempos de credulidade. Esses erros instruíram-me quanto a verdades importantes, de que os nossos sábios fazem uma fraca ideia. A imaginação, de acordo com o que li, é a rainha deste mundo humano; e o grande Descartes, no seu Tratado das Paixões, explicou-me suficientemente as causas. Porque não é possível que uma inquietação, mesmo se consigo vencê-la, não inflame as minhas entranhas; não é possível que uma surpresa não altere as batidas do meu coração. E só a ideia duma minhoca encontrada na minha salada me dá uma náusea real. Todas estas loucas ideias, mesmo que não acreditasse nelas, me agarram no fundo de mim mesmo e nas partes vitais, modificando bruscamente o curso do sangue e dos humores, coisa que a minha vontade não poderia fazer. Ora bem, quaisquer que sejam os inimigos invisíveis que engulo a cada bocado, não podem mais sobre o meu coração nem sobre o meu estômago que as mudanças do meu humor ou as divagações da minha imaginação. É necessário, primeiro, que eu esteja contente, tanto quanto posso; é necessário, em segundo lugar, que afaste este género de preocupações que têm por objecto o meu próprio corpo, e  por efeito perturbar todas as funções vitais. Porque, não se vê na história de todos os povos, homens que morreram por se crerem malditos? Não se vê como funcionavam bem os sortilégios, apenas o interessado estivesse  ao corrente deles? Ora, o que pode fazer o melhor dos médicos, se não enfeitiçar-me? E que  bem posso esperar das suas pílulas, quando uma única palavra sua altera as batidas do meu coração? Não sei bem o que posso esperar da medicina, mas sei bem o que posso recear. E, por minha fé, qualquer desarranjo que sinta nesta máquina a que chamo eu, consolo-me ainda melhor pela ideia  que é a minha atenção e o meu cuidado mesmo que faz quase toda a desordem, e que o primeiro e o mais são remédio é portanto  não temer mais um mal de estômago ou um mal de rins do que um calo no pé. Que um  pouco de epiderme endurecida possa fazer sofrer tanto, não é uma boa lição de paciência?”

     23 de Março de 1922

Alain
(Tradução de José Ames)

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

ARGAN

X


Causas muito pequenas podem estragar um belo dia, por exemplo um sapato que magoa. Nada pode agradar então, e o juízo estupidifica. O remédio é simples; toda esta miséria se despe como um vestido. Sabemo-lo bem;  e estes males tornam-se ligeiros, mesmo no presente, pelo conhecimento das causas. O bebé que sente a ponta dum alfinete grita como se estivesse doente no mais íntimo; é porque não tem ideia da causa nem do remédio. E algumas vezes faz mal a si próprio à força de chorar, e chora ainda com mais força. Eis o que devemos chamar um mal imaginário;  porque os males imaginários são tão reais como os outros; são somente imaginários nisto que os entretemos com os nossos movimentos, ao mesmo tempo que acusamos as coisas exteriores. Não só os bebés se irritam de gritar.

Diz-se muitas vezes que o mau humor é uma doença e que nada se pode fazer. É por isso que eu lembro  em primeiro lugar os exemplos de sofrimento e irritação que um movimento muito simples pode imediatamente suprimir. Sabe-se que uma cãibra na barriga da perna faz gritar o homem mais firme; mas apoiai o pé espalmado no chão, e estais curados num instante. Para um mosquito ou um cisco no olho, se esfregais é um aborrecimento de duas ou três horas; mas mantende apenas as duas mãos imóveis e olhai a ponta do vosso nariz; de imediato a corrente das lágrimas vos liberta; e, desde que aprendi este remédio tão simples, já fiz a experiência mais de vinte vezes.  Prova de que é sensato não acusar logo os seres e as coisas à nossa volta, e de atentar primeiro em nós mesmos. Cremos observar algumas vezes nos outros uma certa predilecção pela infelicidade, e isso vê-se aumentado num certo género de loucos. Donde bem se poderia inventar algum sentimento místico ao mesmo tempo e diabólico. É deixar-se enganar pela imaginação; não há tanta profundeza num homem que se coça, e de modo nenhum um apetite de dor, mas mais uma agitação e irritação que se entretêm por si, pela ignorância das causas. O medo que se tem de cair do cavalo resulta de movimentos canhestros e tumultuosos pelos quais cremos evitar a queda; e o pior é que estes movimentos fazem medo ao cavalo. Donde eu concluiria, à maneira cita,  que quando um homem sabe montar a cavalo, já tem toda a sabedoria ou quase. Há mesmo uma arte de cair, espantosa no bêbedo, porque ele não pensa nada em cair bem, admirável no bombeiro, porque aprendeu pela ginástica a cair sem receio.

Um sorriso parece-nos pouca coisa e sem efeito sobre o humor; por isso nunca o experimentamos. Mas a cortesia muitas vezes, arrancando-nos um sorriso e a graça duma saudação, muda-nos completamente. O fisiologista sabe bem a razão; porque o sorriso desce tão fundo como o bocejo, e, de próximo em próximo, desata a garganta, os pulmões e o coração. O médico não encontraria, na sua caixa de remédios, o quer que agisse tão prontamente, tão harmoniosamente. A imaginação aqui alivia-nos a pena dum modo tão real como os males que ela causa. De resto aquele que quer fazer  de despreocupado sabe bem levantar os ombros, o que, bem vistas as coisas, areja os pulmões e acalma o coração, em todos os sentidos da palavra. Porque esta palavra tem vários sentidos, mas só há um coração.


11de Setembro de 1923



Alain
(Tradução de José Ames)

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

MALES DE ESPÍRITO

IX

A imaginação é pior do que um carrasco chinês: ela doseia o medo; faz-nos saborear como apreciadores. Uma catástrofe real não bate duas vezes no mesmo ponto; o golpe esmaga a vítima; um instante antes, ela era como nós somos quando não há catástrofe. Um passeante é atropelado por um automóvel, lançado a vinte metros e morto na hora. O drama acabou; nem sequer começou; não durou sequer; é pela reflexão que nasce o que durou.

Do mesmo modo, eu que penso no acidente, julgo muito mal. Julgo como um homem que, sempre a ponto de ser esmagado, nunca o seria. Imagino este automóvel que  chega; de facto, eu salvar-me-ia se me apercebesse duma coisa dessas; mas não me salvo, porque me coloco no lugar daquele que foi esmagado. Ofereço-me como que uma imagem cinematográfica do meu próprio esmagamento, mas uma visão vagarosa, e mesmo de tempos a tempos parada; e recomeço; bem vivo, morro mil vezes. Pascal dizia que a doença é insuportável para aquele que se encontra bem, justamente por se encontrar bem. Uma doença grave deixa-nos acabrunhados sem dúvida o suficiente para que não sintamos mais enfim do que a acção presente. Um facto tem isso de bom, por muito mau que seja, que põe  termo ao jogo dos possíveis, que não está para vir, e que nos mostra um futuro novo com cores novas. Um homem que sofre espera, como uma felicidade maravilhosa, um estado medíocre o qual, na véspera, teria feito talvez a sua infelicidade. Nós somos mais sábios do que acreditamos que somos.

Os males reais vão depressa, como o carrasco quando se aproxima. Corta os cabelos e a camisa, amarra os braços, empurra o homem.  Isso parece-me longo, porque penso nisso, e volto a pensar, porque tento ouvir o ruído das tesouras, sentir a mão dos ajudantes sobre os meus braços. De facto, uma impressão expulsa a outra, e os pensamentos reais do condenado são tremores sem dúvida, como os troços dum verme; nós queremos que o verme sofra por ser cortado aos bocados; mas em que bocado está o sofrimento do verme?

Sofremos por reencontrar um velho que voltou à infância, ou um bêbedo estupidificado que nos mostra “o túmulo dum amigo”. Sofremos, porque queremos que eles sejam ao mesmo tempo aquilo que  já não são. Mas a natureza andou o seu caminho; os seus passos são felizmente irreparáveis: cada estado novo torna impossível o seguinte; todo este desgosto que concentrais num ponto está espalhado pela estrada do tempo; é a infelicidade deste instante que transporta o instante seguinte. Um homem velho, não é um homem novo que sofre a velhice; um homem que morre, não é um vivo que morre.

É por isso que só  os vivos podem ser atingidos pela morte, que só os felizes podem conceber o peso do infortúnio; e, para dizer tudo,  podemos ser mais sensíveis aos males de outrem, que tem os seus próprios males, e sem hipocrisia. Daí um falso juízo sobre a vida, que envenena a vida, se não tomamos cuidado. É preciso pensar o real presente com todas as nossas forças, pela  ciência verdadeira, em vez de representar a tragédia.

                                                            12 de Dezembro de 1910

Alain
(Tradução de José Ames)
       

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

DA IMAGINAÇÃO

 VIII


Quando o médico vos recose a pele da cara, na sequência de algum pequeno acidente, há, entre os acessórios, um copo de rum que serve para reanimar a coragem que desfalece. Ora, comummente, não é o paciente que bebe o copo de rum, mas é o amigo espectador, que, sem ser advertido pelos seus próprios pensamentos, fica dum branco esverdeado e à beira de perder os sentidos. O que mostra, contra o moralista, que nem sempre temos força suficiente para suportar os males dos outros.

Este exemplo é bom de considerar porque mostra um género de piedade que não depende nada das nossas opiniões. Directamente a visão destas gotas de sangue e desta pele que resiste à agulha curva, produz uma espécie de horror difuso, como se retivéssemos o nosso próprio sangue, como se endurecêssemos a nossa própria pele. Este efeito da imaginação é invencível pelo pensamento, porque a imaginação é aqui sem pensamento. O raciocínio da sabedoria seria evidente e bem fácil de seguir, porque não é a pele do espectador que está aberta; mas este raciocínio não tem qualquer acção sobre o acontecimento; o rum persuade melhor.

Donde compreendo que os nossos semelhantes têm um grande poder sobre nós, só pela sua presença, apenas pelos sinais das suas emoções e das suas paixões. A piedade, o terror, a cólera, as lágrimas não esperam que eu me interesse em espírito pelo que vejo. A vista dum ferimento horrível muda a face do espectador, e esta face pelo seu lado anuncia  o horrível e atinge o diafragma do espectador,  antes de que ele saiba o que o outro vê. E a descrição, por muito talento que aí se ponha, é menos capaz de comover do que um rosto emocionado. O toque da expressão é directo e imediato. Do mesmo modo, é descrever muito mal a piedade se se diz que aquele que a experimenta pensa nele próprio e se vê no lugar do outro. Esta reflexão, quando vem, só vem depois da piedade; pela imitação do semelhante, o corpo dispõe-se imediatamente segundo o sofrimento, o que produz primeiro uma ansiedade sem nome; o homem pede contas a si mesmo deste movimento do coração que lhe surge como uma doença.

Poder-se-ia também explicar a vertigem por um raciocínio; o homem diante do abismo dir-se-ia que podia cair; mas se  se segura ao parapeito, diz-se pelo contrário que não pode cair; a vertigem nem por isso o percorre menos dos calcanhares à nuca. O primeiro efeito da imaginação é sempre no corpo. Ouvi o relato dum sonho em que o sonhador se encontrava em presença duma execução capital iminente, sem que soubesse se era dele ou de um outro, e sem que mesmo pudesse exprimir qualquer opinião sobre isso; só que sentia uma dor nas vértebras cranianas. Tal é a imaginação pura. A alma separada, a qual queremos sempre supor  generosa e sensível, mas que seria pelo contrário, me parece, sempre económica no seu interesse; o corpo vivo é mais belo, que sofre pela ideia e se cura pela acção. Não sem tumulto; mas também o verdadeiro pensamento tem mais que superar do que uma dificuldade de lógica; e é um resto de tumulto que faz os belos pensamentos. A metáfora é a parte do corpo humano neste jogo heróico.



Alain
(Tradução de José Ames)

domingo, 22 de janeiro de 2012

O FIM DOS ORÁCULOS

VII


Lembro-me dum canhoneiro que lia nas mãos. Era lenhador de seu ofício e formado por essa vida selvagem na interpretação imediata dos sinais; suponho que como qualquer outro feiticeiro se pusesse a observar o oco das mãos; e era ali que ele lia o pensamento, como fazemos todos no olhar e nos vincos do rosto.  No bosque de Clairs-Chênes, à luz duma vela, ele reencontrava o seu templo e a sua majestade, dizendo a respeito dos caracteres coisas muitas vezes justas e sempre comedidas, anunciando também o futuro próximo e o futuro longínquo de cada um, coisas que não fazem nada rir. E tive a ocasião de notar na sequência que uma das suas previsões se achou verificada; no que sem dúvida eu acrescentava alguma coisa à recordação, porque me era agradável reencontrar a predição no acontecimento. Este jogo da imaginação advertiu-me mais uma vez, e confirmou-me na prudência que sempre segui; porque eu não mostrei as linhas da minha mão nem a ele nem a nenhum outro. Toda a força da incredulidade está em que não se quer consultar o oráculo; a partir do momento em que o consultamos, é preciso acreditar um pouco. Assim o fim dos oráculos, que marca a revolução cristã, não é um pequeno acontecimento.

Tales, Bias, Demócrito e os outros velhos famosos dos tempos antigos tinham sem dúvida uma tensão arterial pouco satisfatória  na altura em que começaram a perder o cabelo; mas não sabiam nada disso; não era uma pequena vantagem. Os solitários da Tebaída  estavam ainda melhor colocados; como esperavam a morte em vez de a temer, viviam muito tempo. Se se estudasse fisiologicamente e de muito perto a inquietação e o medo, ver-se-ia que são doenças que se acrescentam às outras e precipitam o seu curso, de tal maneira que aquele que sabe que está doente, e que o sabe antecipadamente segundo o oráculo médico, se encontra duas vezes doente. Bem vejo  que o medo nos leva a combater a doença pelo regime e os remédios; mas que regime e que remédios nos curarão de ter medo?

A vertigem que nos toma nas alturas é uma verdadeira doença, que vem de mimarmos a queda e os movimentos desesperados dum homem que cai. Este mal é todo da imaginação. A cólica do candidato também; assim o medo de responder mal age tão energicamente como o óleo de rícino. Medi depois disso os efeitos dum medo contínuo. Mas para nos tornarmos prudentes em relação à prudência, é preciso chegar a considerar isto, que os movimentos do medo agravam naturalmente o mal. Aquele que tem medo de não dormir está mal disposto para dormir, e o que receia o seu estômago mal disposto para digerir. Era preciso então mimar a saúde em vez da doença. Esta ginástica não é conhecida nos seus detalhes, mas pode-se apostar que os gestos da cortesia e da benevolência se relacionam com a saúde, segundo esta espécie de teorema de acordo com o qual os sinais da saúde não são diferentes dos movimentos conformes à saúde. Os maus médicos seriam então aqueles de que se gosta a ponto de os querer ver interessados nos nossos próprios males; e os bons médicos são aqueles pelo contrário que nos perguntam como é uso:” Como é que vai?” e que não escutam a resposta.



Alain
(Tradução de José Ames)
5 de Março de 1922

sábado, 21 de janeiro de 2012

DAS PAIXÕES

VI
 

Suporta-se menos bem a paixão do que a doença: cuja causa está sem dúvida nisto, que a nossa paixão nos parece resultar inteiramente do nosso carácter e das nossa ideias,  mas transporta com isso os sinais duma necessidade invencível. Quando um ferimento físico nos faz sofrer, reconhecemos nisso a marca da necessidade que nos rodeia; e tudo está bem em nós, salvo o sofrimento. Quando um objecto presente, pelo seu aspecto ou pelo ruído que faz, ou pelo seu odor, provoca em nós movimentos vivos de medo ou de desejo, podemos ainda acusar as coisas e fugir delas, a fim de reconquistarmos o equilíbrio. Mas para a paixão não temos qualquer esperança; porque se eu amo ou se odeio, não é necessário que o objecto esteja diante dos meus olhos; imagino-o, e mudo-o até, por um trabalho interior que é como um poema; tudo me reconduz aí; os meus raciocínios são sofísticos e parecem-me bons; e é muitas vezes a lucidez da inteligência  que me pica no sítio certo. Não se sofre tanto pelas emoções; um belo medo faz-nos fugir e não pensamos então peva em nós próprios. Mas a vergonha de ter tido medo, se nos envergonham, tornar-se-á  cólera ou  discurso. Sobretudo a vergonha aos nossos próprios olhos, quando estamos sós, e principalmente à noite, no repouso forçado eis o que é insuportável, porque então saboreamos, se assim se pode dizer, com vagar, e sem esperança; lançamos todas as flechas e todas recaem sobre nós; somos nós o nosso próprio inimigo. Quando o apaixonado se assegura que não está doente, e que nada o impede de momento de viver bem,  chega a esta reflexão: “ A minha paixão sou eu; e é mais forte do que eu.”

Há sempre remorso e temor na paixão, e pela razão, me parece; porque nos dizemos: “Deverei  tão mal governar-me? Deverei assim remoer as mesmas coisas?” Daí uma humilhação. Mas um medo também, porque nos dizemos: ”É o meu próprio pensamento que está envenenado; os meus próprios raciocínios são contra mim; que poder mágico é este que conduz o meu pensamento?” A magia está aqui no seu lugar. Creio que é a força das paixões e a escravatura interior que conduziram os homens  à ideia dum poder oculto e duma má sorte  lançada por uma palavra ou um olhar. Não podendo julgar-se doente, o apaixonado julga-se maldito; e esta ideia fornece-lhe desenvolvimentos sem fim para se torturar ele mesmo. Quem dará conta destes vivos sofrimentos que não estão em parte nenhuma? E a perspectiva dum suplício sem fim, e que se agrava até de minuto em minuto, faz com que corram para a morte com alegria.

Muito se escreveu sobre isso; e os estóicos deixaram-nos belas reflexões contra o medo e contra a cólera. Mas Descartes é o primeiro, e disso se gaba, a visar o alvo no seu Tratado das Paixões. Ele mostrou que a paixão, embora esteja toda num estado dos nossos pensamentos, depende apesar disso  dos movimentos que se fazem no nosso corpo; é pelo movimento do sangue, e pelo curso de não se sabe que fluido que viaja nos nervos  e no cérebro, que as mesmas ideias voltam sempre, e tão vivas, no silêncio da noite; esta agitação física escapa-nos normalmente;  só vemos os efeitos; ou cremos então que ela resulta da paixão enquanto que ao contrário é o movimento corporal que alimenta as paixões. Se se compreendesse bem isso, poupar-nos-íamos todo o juízo de reflexão, seja sobre os sonhos, seja sobre as paixões, que são sonhos melhor ligados; reconhecer-se-ia nisso a necessidade exterior à qual estamos todos submetidos, em vez de nos acusarmos a nós mesmos e de a nós mesmos nos amaldiçoarmos. Dir-nos-íamos:” Estou triste; vejo tudo negro; mas os acontecimentos não tem nada a ver com isso; os meus arrazoados não têm nada a ver com isso; é o meu corpo que quer arrazoar; são opiniões de estômago.”


Alain
(tradução de José Ames)
9 de Maio de 1911

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

MELANCOLIA

V
 

Há algum tempo, via um amigo que sofria dum cálculo no rim, e que andava de humor muito sombrio. Toda a gente sabe que este género de doença torna as pessoas tristes; como eu lho dizia, ele concordou logo comigo; donde concluí enfim: “Uma vez que você sabe que esta doença dá tristeza, não se deve de modo nenhum  admirar por estar triste, nem ficar com humor.” Este belo raciocínio fê-lo rir com vontade, o que não era um resultado desprezável. Não é menos verdade que, sob esta forma um pouco ridícula, eu dizia uma coisa importante, e raramente considerada por aqueles que sofrem de males.

A profunda tristeza resulta sempre dum estado doentio do corpo; enquanto um desgosto não é doença, em breve nos deixa alguns instantes de paz, e bem mais do que cremos; e o próprio pensamento dum mal espanta mais do que aflige, enquanto a fadiga ou alguma pedra algures alojada, não vem agravar os nossos pensamentos. A maior parte dos homens negam isso, e mantêm que o que os faz sofrer na infelicidade é o pensar que são infelizes; e eu admito que, quando nós próprios nos sentimos infelizes, é muito difícil não crer que certas imagens têm picos e garras, e que elas mesmas nos torturam.

Consideremos no entanto os doentes que se chamam melancólicos;  veremos que eles sabem encontrar em qualquer pensamento que seja as razões de estarem tristes; toda a palavra os fere; se os lastimais, sentem-se humilhados e infelizes sem remédio; se não os lastimais,  dizem-se que já não têm amigos e que estão sozinhos no mundo. Assim esta agitação dos pensamentos só serve para chamar a atenção deles para o estado desagradável em que a doença os mantém; e, no momento em que argumentam contra si próprios, e são esmagados pelas razões que crêem ter de estarem tristes, não fazem mais do que ruminar a sua tristeza como verdadeiros apreciadores. Ora, os melancólicos oferecem-nos uma imagem ampliada de todo o homem aflito. O que é evidente neles, que a sua tristeza é doença, deve ser verdadeiro em todos; a exasperação das penas vem sem dúvida de todo o arrazoado que aí metemos, e através do qual, de algum modo, apalpamos o ponto sensível.

Desta espécie de loucura, que leva as paixões  à fúria, nos podemos livrar dizendo-nos, justamente, que a tristeza é doença apenas, e deve ser suportada como doença, sem tantas razões e arrazoado. Com isso dispersamos o cortejo dos discursos ácidos; tomamos o nosso desgosto como uma dor de barriga; atinge-se uma melancolia muda;  uma espécie de estupor quase sem consciência; não se acusa mais; suporta-se; entretanto repousamos, e assim se combate a tristeza justamente como é preciso. É para isso que tendia a oração, e não é mal achado; diante da imensidade do objecto, diante desta sabedoria que  tudo sabe e tudo pesou, diante desta majestade incompreensível, diante desta justiça impenetrável, o homem pio renunciava a formar o pensamento; não há de certo oração, feita de boa vontade, que não obtenha de imediato muito; vencer o furor, é muito; mas chega-se também, pelo bom senso, a  darmo-nos esta espécie de ópio da imaginação que nos desvia de contarmos os nossos males.



Alain
(Tradução de José Ames)
6 de Fevereiro de 1911



quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

NEURASTENIA

IV


Neste tempo de aguaceiros, o humor dos homens, e o das mulheres também, muda como o céu. Um amigo, muito instruído e bastante razoável, dizia-me ontem: “Não estou contente comigo; logo que não estou ocupado com os meus assuntos ou o bridge, dou voltas na minha cabeça a mil motivos que me fazem passar, com mil nuanças,   da alegria à tristeza e da tristeza à alegria,  mais depressa do que muda o pescoço dos pombos. Esses motivos, como uma carta para escrever ou um eléctrico que se perdeu, ou um sobretudo demasiado pesado, tomam uma importância extraordinária, como o poderiam fazer desgraças reais. Em vão reflicto e  provo a mim mesmo que tudo isso me deve ser indiferente; as minhas razões soam em mim como tambores molhados. E, numa palavra, sinto-me um pouco neurasténico.”

Deixe, digo-lhe eu, as grandes palavras e tente compreender as coisas. O seu estado é o de toda a gente; somente você tem a infelicidade de ser inteligente, de pensar demasiado em si, e de querer compreender por que tanto está alegre como está triste. E irrita-se contra si próprio, porque a sua alegria e a sua tristeza se explicam mal pelos motivos que conhece.

Na realidade, os motivos que se têm para ser feliz ou infeliz não têm peso; tudo depende do nosso corpo e das suas funções, e o mais robusto organismo passa cada dia da tensão à depressão, da depressão à tensão, e muitas vezes, conforme as refeições, as caminhadas, os esforços de atenção, a leitura e o tempo que faz; o seu humor sobe e desce nele, como o barco sobre as vagas. Normalmente, não são mais do que matizes no cinzento; enquanto se está ocupado, não se pensa nisso; mas quando o tempo sobra para pensar nisso e se pensa com aplicação, as pequenas razões acodem em multidão, e você crê que elas são causa quando são efeitos. Um espírito subtil encontra sempre razões suficientes para estar triste se está triste, para estar alegre se está alegre; a mesma razão serve muitas vezes  para dois fins. Pascal, que sofria no seu corpo, amedrontava-se com a infinidade das estrelas; e o frémito augusto que experimentava olhando-as vinha sem dúvida de apanhar frio à sua janela, sem se aperceber. Um outro poeta, se estiver de saúde, falará às estrelas como a amigas. E ambos dirão belas coisas sobre o céu estrelado; belas coisas ao lado da questão.

Spinoza diz que não é possível que o homem não tenha paixões, mas que o sábio forma na sua alma uma tal extensão de pensamentos felizes que as suas paixões são pequenas em comparação. Sem o seguirmos nestes caminhos difíceis, pode-se, no entanto, à sua imagem, construir um grande volume de felicidades devidas ao querer, como música, pintura, conversação, que farão pequenas, por comparação, todas as nossas melancolias. O homem de sociedade esquece o seu fígado com os pequenos deveres; deveríamos corar de vergonha por não tirarmos um melhor partido ainda do nosso sério e útil ofício, nem dos nossos livros, ou dos nossos amigos.  Mas é talvez um erro comum, e de grandes consequências, o de não nos interessarmos segundo uma regra pelas coisas que têm valor. Contamos com elas. É uma grande arte às vezes querer aquilo que estamos certos de desejar.

Alain
(tradução de José Ames)
22 de Fevereiro de 1908

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

MARIA TRISTE

III



Não é inútil reflectir sobre as loucuras circulares, e nomeadamente sobre esta “Maria triste e Maria alegre” que um dos nossos professores de psicologia felizmente encontrou na sua clínica. A história, já por de mais esquecida, devia ser conservada. Esta rapariga andava alegre uma semana, e triste a outra, com a regularidade dum relógio. Quando estava alegre, tudo andava bem; gostava da chuva como do sol; as menores marcas de amizade punham-na em êxtase; se pensava nalgum amor, dizia: “Que grande sorte para mim!” Nunca se aborrecia; os seus menores pensamentos tinham uma cor de regozijo, como belas e sãs flores que agradam todas. Andava no estado que eu vos desejo, meus amigos. Porque, como diz o sábio, toda a bilha tem duas pegas, e da mesma maneira todo o acontecimento tem dois aspectos, sempre acabrunhante se se quiser, sempre reconfortante e consolador se se quiser; e o esforço que se faz para ser feliz nunca é em vão.

Mas após uma semana tudo mudava de tom. Ela caía num langor desesperado; nada a interessava; o seu olhar murchava todas as coisas. Já não acreditava na felicidade; não acreditava mais na afeição. Nunca ninguém tinha gostado dela; e as pessoas tinham razão; julgava-se tola e aborrecida; agravava o mal pensando nele; e sabia-o; matava-se aos bocados, com uma espécie de método horrível. Dizia: “Vocês querem-me fazer acreditar que se interessam por mim; mas eu não me deixo enganar pela vossa comédia.” Um cumprimento era por troça, um favor, para a humilhar. Um segredo, era uma feia intriga. Estes males da imaginação não têm remédio, no sentido em que os melhores acontecimentos sorriem em vão ao homem infeliz. E há mais vontade do que se crê na felicidade.

Mas o professor de psicologia ia descobrir uma lição mais rude ainda, uma mais temível prova para a alma corajosa. Dentre um grande número de observações e de medidas à volta destas curtas estações humanas, veio a contar os glóbulos de sangue por centímetro cúbico. E a lei foi manifesta. Para o fim dum período de alegria, os glóbulos rarefaziam-se; para o fim dum período de tristeza, recomeçavam a esfuziar. Pobreza e riqueza do sangue, tal era a causa de toda esta fantasmagoria de imaginação. Assim o médico estava em condições de responder aos seus discursos apaixonados: “Console-se; amanhã você será feliz.” Mas ela não queria acreditar.

Um amigo, que se cria triste no fundo, dizia-me a propósito disso: “ O que há de mais claro? Nós não podemos fazer nada. Eu não posso dar a mim mesmo os glóbulos vermelhos através da reflexão. Assim toda a filosofia é vã. Este grande universo traz-nos a alegria ou a tristeza segundo as suas leis, como o Inverno e o Verão, como a chuva e o sol. O meu desejo de ser feliz não conta mais do que o meu desejo de passear; não faço a chuva sobre este vale; não faço a melancolia em mim; sofro-a e sei que a sofro; grande consolação!”
Não é tão simples. É claro que ruminando juízos severos, predições sinistras, negras recordações, nos confrontamos com a nossa própria tristeza; de alguma maneira a saboreamos. Mas se eu sei bem que há glóbulos vermelhos no caso, rio dos meus raciocínios; expulso a tristeza para o corpo, onde ela não é mais do que fadiga ou doença, sem qualquer ornamento. Suporta-se melhor uma dor de estômago do que uma traição. E não é melhor dizer que faltam glóbulos vermelhos, do que faltam os amigos verdadeiros? O apaixonado rejeita ao mesmo tempo as razões e o brometo. Não é notável que por este método que eu digo se abra a porta aos dois remédios?
                                                           18de Agosto de 1913
Alain
(Tradução de José Ames)

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

IRRITAÇÃO

II


 
Quando se engole de través, produz-se um grande tumulto no corpo, como se um perigo iminente fosse anunciado a todas as partes; cada músculo puxa à sua maneira, o coração intromete-se; é uma espécie de convulsão. Que fazer? Poderemos nós não seguir nem sofrer todas estas reacções? Eis o que dirá o filósofo, por que é um homem sem experiência. Mas um professor de ginástica ou de esgrima riria bem se o aluno lhe dissesse: “ é mais forte do que eu;  não posso impedir-me de ficar rígido e de forçar todos os músculos ao mesmo tempo.” Eu conheci um homem duro, que depois de perguntar se lho permitiam, vos fustigava vivamente  com o seu florete, a fim de abrir o caminho à razão. É um facto sobejamente conhecido este; os músculos seguem naturalmente o pensamento como cães dóceis; penso em estender o braço e logo o estendo. A causa principal  destas crispações ou sedições nas quais pensava há pouco, é justamente que não se sabe o que é preciso fazer. E, no nosso exemplo, o que é preciso fazer, é justamente  relaxar todo o corpo, e nomeadamente, em vez de aspirar com força, o que agrava a desordem, expulsar, pelo contrário, a pequena parcela de líquido que se introduziu na má via. Isso não é mais do que, por outras palavras,  expulsar o medo, que, nesse caso, como nos outros, é inteiramente prejudicial.

Quanto à tosse, numa constipação, existe uma disciplina do mesmo género, muito pouco praticada. A maior parte das pessoas tossem como se coçam, com uma espécie de furor de que são as vítimas. Daí as crises que fatigam e irritam. Contra o que, os médicos descobriram as pastilhas, cuja acção principal, creio bem, é de nos dar de que engolir. Engolir é uma poderosa reacção, menos voluntária ainda do que a tosse, ainda  mais abaixo do nosso alcance. Esta convulsão de engolir torna impossível essa outra convulsão que nos faz tossir. É ainda virar o bebé. Mas eu creio que se se parasse no primeiro momento o que há de tragédia na tosse, passaríamos sem pastilhas. Se, sem qualquer opinião, ficássemos  soltos e imperturbáveis no começo, a primeira irritação passaria depressa.

Esta palavra, irritação, deve fazer reflectir. Pela sabedoria da linguagem,  convém também para designar a mais violenta das paixões. E não vejo muita diferença entre um homem que se abandona à cólera e um homem que se entrega a um ataque de tosse. Da mesma maneira o medo é uma angústia do corpo contra a qual nem sempre se sabe lutar pela ginástica. A falta, em todos este casos, é pôr o pensamento ao serviço das paixões, e de nos lançarmos no medo e na cólera com uma espécie de entusiasmo feroz. Em suma, agravamos a doença pelas paixões; tal é o destino daqueles que não aprenderam a verdadeira ginástica. E a verdadeira ginástica, como os Gregos a compreenderam, é o império da recta razão sobre os movimentos do corpo. Não sobre todos, bem entendido. Mas trata-se somente de não constranger as reacções naturais pelos movimentos de fúria. E eis, segundo a minha opinião, o que era preciso ensinar às crianças, propondo-lhes sempre como modelo as mais belas estátuas,  verdadeiros objectos do culto humano.

ALAIN
(tradução de José Ames)
                                                       5 de Dezembro de 1912

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

BUCÉFALO

I

 
Quando uma criança chora e não quer ser consolada, a ama muitas vezes faz engenhosas suposições sobre este jovem carácter e o que lhe agrada ou desagrada; apelando até para a hereditariedade, reconhece já o pai no filho; estas tentativas de psicologia prolongam-se até ao momento em que a ama descobre o alfinete, causa real de tudo.

Quando Bucéfalo, cavalo ilustre, foi presente ao jovem Alexandre, nenhum escudeiro podia manter-se em cima deste temível animal. A propósito do que um homem vulgar teria dito: “Eis um cavalo mau.” Alexandre, no entanto, procurava o alfinete, e encontrou-o depressa, notando que Bucéfalo temia terrivelmente a sua própria sombra; e como o medo fazia também saltar a sombra, isso não tinha fim. Mas ele virou o focinho de Bucéfalo para o sol, e, mantendo-o nesta direcção, pôde sossegá-lo e fatigá-lo. Assim, o aluno de Aristóteles sabia já que não temos qualquer poder sobre as paixões enquanto não lhe conhecermos as verdadeiras causas.

Muitos homens refutaram o medo, e por fortes razões; mas aquele que tem medo não escuta nenhuma razão; antes escuta as batidas do seu coração e as vagas do sangue. O pedante raciocina do perigo para o medo; o homem apaixonado raciocina do medo para o perigo; ambos pretendem ser razoáveis, e ambos se enganam; mas o pedante engana-se duas vezes, porque ignora a verdadeira causa e não compreende o erro do outro. Um homem que tem medo inventa qualquer perigo, a fim de explicar este medo real e amplamente constatado. Ora a menor surpresa faz medo, sem nenhum perigo, por exemplo, um tiro de pistola muito perto, e que não se espera ou até a presença de alguém com que não se conta. Masséna teve medo duma estátua numa escada mal iluminada, e fugiu a sete pés.

A impaciência dum homem e o seu humor vêm-lhe muitas vezes de estar demasiado tempo de pé; não discorrais contra o seu humor, mas oferecei-lhe um assento. Talleyrand, dizendo que as maneiras são tudo, disse mais do que o que pretendia dizer. Pela preocupação de não incomodar, ele procurava o alfinete e acabava por encontrá-lo. Todos estes diplomatas presentemente têm algum alfinete mal colocado na sua camisola, donde as complicações europeias; e cada um sabe que uma criança que grita faz gritar as outras; pior do que isso, grita-se porque se grita. As amas, num gesto que é todo saber da profissão, colocam a criança sobre o ventre; são logo outros movimentos e um outro regime; eis uma arte de persuadir que não visa muito alto. Os males do ano catorze vieram, ao que creio, de que os homens importantes foram todos surpreendidos; donde tiveram medo. Quando um homem tem medo, a cólera não está longe; a irritação segue a excitação. Não é uma circunstância favorável quando um homem é bruscamente arrancado do seu lazer e do seu repouso; altera-se muitas vezes e de mais. Como um homem despertado de repente; acorda de mais. Mas nunca digais que os homens são maus; não digais nunca que têm um tal carácter. Procurai o alfinete.

Alain
(Tradução de José Ames)
8 de Dezembro de 1922