LXXXVIII
É uma bela amizade a de Goethe e Schiller, que se vê nas
suas cartas. Cada um dá ao outro o único socorro que uma natureza pode esperar
de outra, que é que a outra a confirme e lhe peça somente para ser igual a si
mesma. É pouco tomar os seres como eles são, e é preciso sempre chegar aí; mas
querê-los como eles são, eis o amor verdadeiro. Estes dois homens, pois, cada
um empurrando para fora a sua natureza exploradora, viram em comum pelo menos
isto, que as diferenças são belas, e que os valores se ordenam não de uma rosa
a um cavalo, mas duma rosa a uma bela rosa, e dum cavalo a um belo cavalo.
Diz-se bem que não se devem discutir os
gostos, e isso é verdade se um prefere uma rosa e o outro um cavalo; mas sobre
o que é uma bela rosa ou um belo cavalo, pode-se discutir porque se pode chegar
a acordo. Todavia estes exemplos são ainda abstractos, embora estejam no bom
caminho, porque tais seres são ainda servos da espécie, ou então nossos e das
nossas necessidades. Ninguém litigará pela música, nem pela pintura; mas
discute-se utilmente sobre o quadro original e a cópia, reconhecendo num os
sinais da natureza livre e
desenvolvendo-se do seu próprio fundo, e na outra as cicatrizes do escravo e o
desenvolvimento pela ideia exterior. Os nossos dois poetas deviam sentir estas
diferenças na ponta da sua pena. O admirável é que, reflectindo entre eles e
ocupando-se muitas vezes de perfeição e
de ideal, nunca tenham por um só momento extraviado o seu génio próprio. Cada
um, é certo, aconselha o outro, e isso acaba por querer dizer: “Eis como eu
teria feito.” Mas ao mesmo tempo cada um sabe bem que aquilo que aconselha ao
outro é como que nulo para o outro. E o outro, em resposta, reenvia fortemente o conselho ao conselheiro,
resolvido a procurar pelas suas próprias vias.
Suponho que o poeta, e todo o artista, é advertido, pela
felicidade, do que pode e do que não pode; porque a felicidade, como diz
Aristóteles, é o sinal das forças. Mas esta regra, ao que creio, é boa para
todos. Só há de temível no mundo o homem que se aborrece. Todos aqueles que se
diz que são maus são descontentes nisso; não descontentes porque são maus; mas
antes este aborrecimento que os segue por todo o lado é o sinal que eles não
desenvolvem em nada a sua perfeição própria, e que assim agem ao modo das causas cegas e mecânicas. De
resto, não há sem dúvida no mundo senão
o louco furioso que exprima ao mesmo tempo a mais profunda infelicidade e a
pura maldade. Todavia, naqueles que chamamos maus, em cada um de nós também,
noto alguma coisa de perdido e de mecânico, ao mesmo tempo que o furor de
escravo. Pelo contrário, o que é feito com felicidade é bom. As obras de arte
testemunham isso bem claramente. Diz-se energicamente dum traço que é feliz.
Mas toda a acção boa é ela mesmo bela e embeleza o rosto do homem. Ora, é
universal que não se teme nunca uma bela face. Donde conjecturo que as
perfeições não se contrariam nunca e que só as imperfeições ou os vícios lutam entre si; de que o medo é um exemplo
chocante. E é por isso que o método de encadear, que é do tirano e o do
poltrão, me pareceu sempre essencialmente louco, e pai de toda a loucura.
Desatai, libertai, e não tenhais medo. Quem é livre está desarmado.
Alain
(Tradução de José Ames)
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