XXXIX
Vi uma das novas locomotivas do Oeste, mais comprida ainda,
mais alta, mais simples do que as outras; as engrenagens têm o acabamento dum
relógio; quase que rola sem ruído; sente-se que aí todos os esforços são úteis
e tendentes para o mesmo fim; o vapor não se escapa sem ter empregue nos
pistões toda a energia que recebeu do fogo; imagino o fácil arranque, a
velocidade regular, a pressão agindo sem estremeções, e o pesado comboio
deslizando dois quilómetros num minuto. De resto o tênder monumental diz tudo
sobre o carvão que é preciso queimar.
Eis quanta ciência, quantos planos, quantos ensaios,
quantos golpes de martelo e de lima. Tudo isso para quê? Para ganhar talvez um
quarto de hora na duração da viagem entre Paris e o Havre. E que farão eles, os
felizes viajantes, deste quarto de hora tão custosamente obtido? Muitos
usá-lo-ão no cais à espera da hora; outros ficarão um quarto de hora mais no
café e lerão o jornal até aos anúncios. Onde está o lucro? Para quem é o lucro?
Coisa estranha, o viajante, que se aborreceria se o
comboio fosse menos depressa, empregará um quarto de hora, antes da partida ou
depois da chegada, a explicar que este
comboio leva um quarto de hora menos do que os outros a fazer o percurso. Todo
o homem perde pelo menos um quarto de hora por dia em propósitos deste género,
ou a jogar às cartas, ou a sonhar. Por que não haveria de perder também esse
tempo numa carruagem?
Em nenhuma parte se está tão bem como numa carruagem; falo
dos comboios rápidos. Está-se bem sentado, melhor do que em qualquer sofá.
Pelas largas janelas vêem-se passar os rios, os vales, as colinas, as povoações
e as cidades; a vista acompanha as estradas pela encosta, as viaturas nessas
estradas, comboios de embarcações nos rios; todas as riquezas do país se
estendem aí, ora são os trigos e os centeios, ora campos de beterrabas e uma
refinaria, depois belos bosques, pastos, bois, cavalos. Os fossos mostram as
camadas do terreno. Eis um maravilhoso álbum de geografia, que folheais sem
esforço, e que muda todos os dias, conforme as estações e conforme o tempo.
Vê-se a tempestade acumular-se atrás das colinas e os carros de feno
apressarem-se ao longo dos caminhos; em outro dia na colheita trabalha-se numa
espécie de poeira dourada e o ar vibra ao sol. Que espectáculo se compara a
este?
Mas o viajante lê o seu jornal, tenta interessar-se por
más gravuras, saca o relógio, boceja,
abre a sua mala, fecha-a. Mal chegado, chama um fiacre, e corre como se
o fogo lhe estivesse em casa. À noite, encontrá-lo-eis no teatro; admirará
árvores em cartão pintado, falsas colheitas, um falso campanário; falsos
camponeses lhe gritarão aos ouvidos; e ele vai dizer, ao mesmo tempo que
esfrega os joelhos massacrados pela espécie de caixa em que está aprisionado:
“Os camponeses cantam mal; mas a decoração não é feia.”
Alain
(Tradução de José Ames)
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