terça-feira, 20 de março de 2012

VELOCIDADE

XXXIX


Vi uma das novas locomotivas do Oeste, mais comprida ainda, mais alta, mais simples do que as outras; as engrenagens têm o acabamento dum relógio; quase que rola sem ruído; sente-se que aí todos os esforços são úteis e tendentes para o mesmo fim; o vapor não se escapa sem ter empregue nos pistões toda a energia que recebeu do fogo; imagino o fácil arranque, a velocidade regular, a pressão agindo sem estremeções, e o pesado comboio deslizando dois quilómetros num minuto. De resto o tênder monumental diz tudo sobre o carvão que é preciso queimar.

Eis quanta ciência, quantos planos, quantos ensaios, quantos golpes de martelo e de lima. Tudo isso para quê? Para ganhar talvez um quarto de hora na duração da viagem entre Paris e o Havre. E que farão eles, os felizes viajantes, deste quarto de hora tão custosamente obtido? Muitos usá-lo-ão no cais à espera da hora; outros ficarão um quarto de hora mais no café e lerão o jornal até aos anúncios. Onde está o lucro? Para quem é o lucro?

Coisa estranha, o viajante, que se aborreceria se o comboio fosse menos depressa, empregará um quarto de hora, antes da partida ou depois da chegada, a explicar que  este comboio leva um quarto de hora menos do que os outros a fazer o percurso. Todo o homem perde pelo menos um quarto de hora por dia em propósitos deste género, ou a jogar às cartas, ou a sonhar. Por que não haveria de perder também esse tempo numa carruagem?

Em nenhuma parte se está tão bem como numa carruagem; falo dos comboios rápidos. Está-se bem sentado, melhor do que em qualquer sofá. Pelas largas janelas vêem-se passar os rios, os vales, as colinas, as povoações e as cidades; a vista acompanha as estradas pela encosta, as viaturas nessas estradas, comboios de embarcações nos rios; todas as riquezas do país se estendem aí, ora são os trigos e os centeios, ora campos de beterrabas e uma refinaria, depois belos bosques, pastos, bois, cavalos. Os fossos mostram as camadas do terreno. Eis um maravilhoso álbum de geografia, que folheais sem esforço, e que muda todos os dias, conforme as estações e conforme o tempo. Vê-se a tempestade acumular-se atrás das colinas e os carros de feno apressarem-se ao longo dos caminhos; em outro dia na colheita trabalha-se numa espécie de poeira dourada e o ar vibra ao sol. Que espectáculo se compara a este?

Mas o viajante lê o seu jornal, tenta interessar-se por más gravuras, saca o relógio, boceja,  abre a sua mala, fecha-a. Mal chegado, chama um fiacre, e corre como se o fogo lhe estivesse em casa. À noite, encontrá-lo-eis no teatro; admirará árvores em cartão pintado, falsas colheitas, um falso campanário; falsos camponeses lhe gritarão aos ouvidos; e ele vai dizer, ao mesmo tempo que esfrega os joelhos massacrados pela espécie de caixa em que está aprisionado: “Os camponeses cantam mal; mas a decoração não é feia.”


Alain
(Tradução de José Ames)

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