terça-feira, 27 de março de 2012

DIÓGENES

XLIV


O homem só é feliz por querer e inventar. Isso vê-se no jogo de cartas; é claro, pelos rostos, que cada um contempla então a sua própria força de deliberar e de decidir; há os Césares da manilha, e passagens do Rubicão a cada instante. Mesmo nos jogos de azar, o jogador tem todo o poder de arriscar ou de não arriscar; às vezes ousa, qualquer que seja o risco; às vezes abstém-se, qualquer que seja a esperança; governa-se a si mesmo; reina. O desejo e o medo, importunos conselheiros nos assuntos correntes, estão aqui fora do conselho, pela impossibilidade em que nos encontramos de prever. Por isso o jogo é a paixão das almas orgulhosas. Aqueles que se resignam a ganhar obedecendo não concebem sequer o prazer de jogar o bacará; mas se tentarem, conhecerão, pelo menos um curto momento, a embriaguês do poder.

Todos os ofícios agradam enquanto neles se governa, e desagradam quando se obedece. O condutor do carro eléctrico tem menos felicidade do que o motorista do autocarro. A caça livre e solitária dá prazeres vivos, porque o caçador faz o seu plano, segue-o ou então altera-o, sem ter que prestar contas nem explicar as razões. O prazer de matar à frente dos batedores é bem magro em comparação; mas um hábil atirador goza do poder que exerce contra a emoção e a surpresa. Assim, aqueles que dizem que o homem procura o prazer e foge do esforço descrevem-no mal. O homem aborrece-se do prazer recebido e prefere, de muito longe, o prazer conquistado; mas acima de tudo gosta de agir e de conquistar; não gosta de aguentar nem de sofrer; é por isso que escolhe o esforço com a acção em vez do prazer sem a acção. Diógenes o paradoxal gostava de dizer que é o esforço que é bom; queria dizer o esforço escolhido e voluntário; porque, do esforço imposto, ninguém gosta.

O alpinista desenvolve a sua própria força e prova-a a si mesmo; sente-a e pensa-a ao mesmo tempo; esta alegria superior ilumina a paisagem nevada. Mas aquele que um comboio eléctrico levou até ao cimo famoso não pode encontrar o mesmo sol. É por isso que é verdade que as perspectivas do prazer nos enganam; mas enganam-nos de duas maneiras; porque o prazer recebido nunca paga aquilo que prometia, enquanto que o prazer de agir, pelo contrário,  paga sempre mais do que prometia. O atleta exerce-se tendo em vista conquistar a recompensa; mas logo, pelo progresso e pela dificuldade vencida, conquista uma outra recompensa, que está nele e dele depende. E é o que o preguiçoso não pode sequer imaginar; porque só vê a pena e a outra recompensa; ele pesa uma e outra e não se decide; mas o atleta está já de pé e a trabalhar, apoiado no exercício da véspera, e imediatamente gozando a sua própria vontade e força. De tal maneira que só o trabalho é agradável; mas o preguiçoso não sabe isso nem pode sabê-lo; ou então, se o sabe por ouvir dizer ou pela recordação, não pode acreditar; eis por que o cálculo dos prazeres engana sempre, e o aborrecimento vem. Quando o animal pensante se aborrece, a cólera não está longe. Todavia, o aborrecimento de ser servo parece-me menos azedo do que o aborrecimento de ser senhor; porque, por muito monótona que seja a acção, fica sempre um pouco para governar e inventar; enquanto que aquele que recebe os prazeres já feitos é naturalmente mau. Assim o rico governa pelo humor e pela tristeza; a fraqueza do trabalhador vem de que ele se sente mais contente do que queria. Faz de mau.


Alain
(Tradução de José Ames)
                                                                                                         

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