XLIV
O homem só é feliz por querer e inventar. Isso vê-se no
jogo de cartas; é claro, pelos rostos, que cada um contempla então a sua
própria força de deliberar e de decidir; há os Césares da manilha, e passagens
do Rubicão a cada instante. Mesmo nos jogos de azar, o jogador tem todo o poder
de arriscar ou de não arriscar; às vezes ousa, qualquer que seja o risco; às
vezes abstém-se, qualquer que seja a esperança; governa-se a si mesmo; reina. O
desejo e o medo, importunos conselheiros nos assuntos correntes, estão aqui
fora do conselho, pela impossibilidade em que nos encontramos de prever. Por
isso o jogo é a paixão das almas orgulhosas. Aqueles que se resignam a ganhar
obedecendo não concebem sequer o prazer de jogar o bacará; mas se tentarem,
conhecerão, pelo menos um curto momento, a embriaguês do poder.
Todos os ofícios agradam enquanto neles se governa, e
desagradam quando se obedece. O condutor do carro eléctrico tem menos
felicidade do que o motorista do autocarro. A caça livre e solitária dá
prazeres vivos, porque o caçador faz o seu plano, segue-o ou então altera-o,
sem ter que prestar contas nem explicar as razões. O prazer de matar à frente
dos batedores é bem magro em comparação; mas um hábil atirador goza do poder
que exerce contra a emoção e a surpresa. Assim, aqueles que dizem que o homem
procura o prazer e foge do esforço descrevem-no mal. O homem aborrece-se do prazer
recebido e prefere, de muito longe, o prazer conquistado; mas acima de tudo
gosta de agir e de conquistar; não gosta de aguentar nem de sofrer; é por isso
que escolhe o esforço com a acção em vez do prazer sem a acção. Diógenes o
paradoxal gostava de dizer que é o esforço que é bom; queria dizer o esforço
escolhido e voluntário; porque, do esforço imposto, ninguém gosta.
O alpinista desenvolve a sua própria força e prova-a a si
mesmo; sente-a e pensa-a ao mesmo tempo; esta alegria superior ilumina a
paisagem nevada. Mas aquele que um comboio eléctrico levou até ao cimo famoso
não pode encontrar o mesmo sol. É por isso que é verdade que as perspectivas do
prazer nos enganam; mas enganam-nos de duas maneiras; porque o prazer recebido
nunca paga aquilo que prometia, enquanto que o prazer de agir, pelo
contrário, paga sempre mais do que
prometia. O atleta exerce-se tendo em vista conquistar a recompensa; mas logo,
pelo progresso e pela dificuldade vencida, conquista uma outra recompensa, que
está nele e dele depende. E é o que o preguiçoso não pode sequer imaginar;
porque só vê a pena e a outra recompensa; ele pesa uma e outra e não se decide;
mas o atleta está já de pé e a trabalhar, apoiado no exercício da véspera, e
imediatamente gozando a sua própria vontade e força. De tal maneira que só o
trabalho é agradável; mas o preguiçoso não sabe isso nem pode sabê-lo; ou
então, se o sabe por ouvir dizer ou pela recordação, não pode acreditar; eis
por que o cálculo dos prazeres engana sempre, e o aborrecimento vem. Quando o
animal pensante se aborrece, a cólera não está longe. Todavia, o aborrecimento
de ser servo parece-me menos azedo do que o aborrecimento de ser senhor;
porque, por muito monótona que seja a acção, fica sempre um pouco para governar
e inventar; enquanto que aquele que recebe os prazeres já feitos é naturalmente
mau. Assim o rico governa pelo humor e pela tristeza; a fraqueza do trabalhador
vem de que ele se sente mais contente do que queria. Faz de mau.
Alain
(Tradução de José Ames)
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