quarta-feira, 14 de março de 2012

O ABORRECIMENTO

XXXVIII


Quando um homem não tem mais nada para construir ou para destruir, é muito infeliz. As mulheres, quero dizer aquelas que se ocupam de trapos e bonecas, não compreenderão nunca sem dúvida  por que é que os homens vão ao café e jogam às cartas. Viver consigo e meditar sobre si mesmo, isso não vale nada.

No admirável 'Wilhelm Meister' de Goethe, há uma “Sociedade de Renúncia” cujos membros não devem pensar nem no futuro nem no passado. Esta regra, tanto quanto pode ser seguida, é muito boa. Mas, para que possa ser seguida, é preciso que as mãos e os olhos estejam ocupados. Perceber e agir, eis os verdadeiros remédios. Pelo contrário, se rolamos os polegares, cairemos depressa no medo e no arrependimento.  O pensamento é uma espécie de jogo que nem sempre é muito são. Comummente anda-se à volta sem avançar. Eis por que o grande Jean-Jacques escreveu: “O homem que medita é um animal depravado.”

A necessidade arranca-nos daí, quase sempre. Quase todos temos um ofício para exercer, e é muito bom. O que nos falta, são os pequenos ofícios que nos repousem do outro. Muitas vezes invejei as mulheres, porque  fazem malha ou bordados. Os seus olhos têm qualquer coisa de real para seguir; isso faz com que as imagens do passado e do futuro só apareçam por lampejos. Mas, nessas reuniões onde se gasta o tempo, os homens não têm nada para fazer, e zumbem como moscas numa garrafa.

As horas de insónia, quando não se está doente, só são tão temidas, creio,  porque a imaginação é então demasiado livre e não tem objectos reais a considerar. Um homem deita-se às dez horas e, até à meia-noite, salta como uma carpa invocando o deus do sono. O mesmo homem, à mesma hora, se estivesse no teatro, esqueceria completamente a sua própria existência.

Estas reflexões ajudam a compreender as ocupações variadas que preenchem a vida dos ricos. Eles dão-se mil deveres e mil trabalhos e correm para eles como quando há fogo. Fazem dez visitas por dia e vão do concerto ao teatro. Aqueles que têm um sangue mais vivo lançam-se na caça, na guerra ou em viagens perigosas. Outros rodam de automóvel e esperam impacientemente a ocasião de quebrarem os ossos num aeroplano.  Precisam de acções novas e percepções novas. Querem viver no mundo, e não neles mesmos. Como os grandes mastodontes pastavam as florestas, eles pastam o mundo pelos olhos. Os mais simples jogam a levar grandes socos no nariz e no estômago; isso reencaminha-os para as coisas presentes, e são muito felizes. As guerras são talvez em primeiro lugar um remédio para o aborrecimento; assim se  explicaria que os mais dispostos a aceitar a guerra, se não a querê-la, são muitas vezes aqueles que têm mais a perder. O medo de morrer é um pensamento de ocioso, logo apagado por uma acção premente, por muito perigosa que seja. Uma batalha é sem dúvida uma das circunstâncias em que se pensa menos na morte. Donde este paradoxo: quanto melhor se preenche a vida, menos se receia perdê-la.


Alain
(Tradução de José Ames)

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