sexta-feira, 9 de março de 2012

A PAZ DO LAR

XXXV


Volto a este terrível “Poil de Carotte” de Jules Renard.  Este livro é sem indulgência e é bom dizer a propósito que o mau lado das coisas não é difícil de perceber; comummente são as paixões que se mostram e é a amizade que se esconde.  E é tanto mais inevitável quanto a intimidade é maior. Um homem que não compreende isso é necessariamente infeliz.

Em família, e sobretudo se os corações são completamente devotados, ninguém se incomoda, ninguém toma uma máscara. Assim, uma mãe, aos olhos do seu filho, não pensará nunca em provar-lhe que é uma boa mãe; ou então é o filho que é mau até à ferocidade.  Um bom filho deve esperar portanto ser tratado algumas vezes sem maneiras; é essa propriamente a sua recompensa. A cortesia é para os indiferentes, e o humor, bom ou mau, é para aqueles de que muito se gosta.

Um dos efeitos do amor partilhado, é que o mau humor é aí trocado ingenuamente. O sábio verá nisso as provas da confiança e do abandono. Os romancistas notaram muitas vezes que a primeira marca de infidelidade da mulher, é um regresso da cortesia e da atenção em relação ao  marido; mas é um engano ver nisso um cálculo. É que o abandono já não está lá. “E se eu gostar de que me batam”; esta frase de teatro amplia até ao ridículo uma verdade do coração. Bater, injuriar, incriminar, é sempre um primeiro movimento. Por este excesso de confiança, a família pode perecer, entendo por isso tornar-se um meio detestável onde as vozes ganham espontaneamente o tom da mais viva cólera. E isso compreende-se bem; nesta intimidade de todos os dias, a cólera de um alimenta a cólera do outro, e as menores paixões assim se multiplicam. É por isso muito fácil  descrever todos os humores azedos; e se ao menos fossem explicados, o remédio encontrar-se-ia ao lado do mal.

Com toda a ingenuidade cada um diz de uma criatura resmungona ou rabugenta que conhece bem: “É o seu carácter.” Mas eu não creio muito nos caracteres. Porque, segundo a experiência, aquilo que é regularmente comprimido perde a sua importância ao ponto de se tornar negligenciável. Em presença do rei, o mau humor dum cortesão não é dissimulado, é abolido pelo vivo prazer de agradar; um movimento exclui o outro; se estenderdes amigavelmente a mão, excluis o soco. É assim com  os sentimentos que tiram toda a sua vivacidade dos gestos começados e retidos. Uma mulher  que tem convidados e que interrompe a sua cólera  para receber uma visita imprevista, não me faz dizer: “Que hipocrisia!” mas: "Que remédio perfeito contra a cólera!”

A ordem familiar é como a ordem do direito; não se faz sozinha; faz-se e conserva-se pela vontade. Aquele que compreendeu todo o perigo do primeiro movimento regula os seus gestos e conserva assim os sentimentos nos quais faz fé. É por isso que o casamento deve ser indissolúvel em relação à vontade. Por aí nos comprometemos a conservá-lo bom, acalmando as tempestades. Eis a utilidade dos juramentos.


Alain
(Tradução de José Ames)

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