segunda-feira, 12 de março de 2012

DA VIDA PRIVADA

XXXVI


Foi La Bruyère, creio, que disse que há bons casamentos, mas que não há casamentos deliciosos. É preciso que a nossa humanidade se livre deste pântano dos falsos moralistas, segundo os quais havemos de provar e de nos pronunciarmos sobre a felicidade, como se fosse um fruto. Mas eu digo, que mesmo para um fruto, podemos ajudá-lo a ser bom. Ainda melhor quanto ao casamento e a toda a ligação humana; estas coisas não são para serem degustadas ou sofridas, mas é preciso fazê-las. Uma sociedade não é como uma sombra onde se está bem ou mal, conforme o tempo e as correntes de ar. É, pelo contrário, o lugar dos milagres, onde o feiticeiro faz a chuva e o bom tempo.

Cada um faz muito pelo seu comércio ou a sua carreira. Mas, comummente, não se faz nada para ser feliz em sua casa. 

Já escrevi muito sobre a cortesia, certamente sem a louvar como merece. E não digo de modo nenhum que a cortesia é uma mentira, boa para o estrangeiro; digo que quanto mais os sentimentos são sinceros e preciosos, mais eles têm necessidade de cortesia. Um comerciante que dissesse: “Vá para o diabo” julgaria dizer aquilo que pensa; mas aí está a armadilha das paixões. Na nossa vida imediata, tudo o que se apresenta é falso. Abro os olhos ao despertar, tudo o que vejo é falso; o meu trabalho é julgar, calcular, e reenviar as coisas à sua distância. Não importa qual primeira visão é o sonho dum instante e os sonhos são sem dúvida curtos despertares sem juízo. Pois bem, por que quereis que eu julgue melhor com os meus sentimentos imediatos?

Hegel diz que a alma imediata, ou natural, está sempre envolvida pela melancolia e como que acabrunhada. Isso pareceu-me duma bela profundeza. Quando a reflexão sobre si não corrige, é um mau jogo. E quem se interroga responde-se sempre mal. O pensamento que se contempla somente é só aborrecimento, ou tristeza, ou inquietação, ou impaciência. Tentai. Perguntai a vós mesmos: “O que vou ler para passar o tempo?”  Já estais a bocejar. É preciso aplicarmo-nos. O desejo recai se não se acaba em vontade. E estas observações bastam para julgar os psicólogos, que quereriam que cada um  estudasse curiosamente os seus próprios pensamentos, como se faz com as ervas ou as conchas. Mas pensar é querer.

Ora, o que se faz tão bem na vida pública, comércio, indústria, onde cada um se governa e se corrige a cada instante, não resulta da mesma maneira na vida privada. Cada um deita-se sobre os seus afectos. Bom para dormir; mas no meio-sono da família, tudo é azedo facilmente. Pelo que os melhores são conduzidos a uma medonha hipocrisia. Coisa a notar, emprega-se uma espécie de vontade em esconder sentimentos, em vez de os mudar por vontade, movendo-se todo, como um ginasta. Esta ideia de que o mau humor, a tristeza, o aborrecimento, são factos como a chuva ou o vento, é com efeito a primeira ideia, e falsa. E, em resumo, a verdadeira cortesia consiste em experimentar o que se deve. Obrigamo-nos bem ao respeito, à discrição, à justiça.  Este último exemplo é bom que se  considere; um retorno vivo à justiça, apesar dos primeiros movimentos das paixões, não é decerto dum ladrão; mas antes  a  probidade mesma, sem nenhuma hipocrisia. Por que é que se pretende que não seja assim com o amor? O amor não é natural; o próprio desejo não o é por muito tempo. Mas os sentimentos verdadeiros são obras. Não se joga às cartas para as largar ao primeiro movimento de impaciência ou de aborrecimento; e ninguém jamais teve a ideia de tocar ao acaso num piano. A música é mesmo de todos os exemplos o melhor; porque ela não se aguenta, mesmo no canto, a não ser pela vontade, e  a graça vem a seguir, como  dizem às vezes os teólogos, mas sem saberem bem do que falam.


Alain
(Tradução de José Ames)

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