terça-feira, 13 de março de 2012

O CASAL

XXXVII


Romain Rolland, no seu belo livro, deixa entender que um bom casal é raro, e por causas naturais. Seguindo os mesmos caminhos, considerando as suas personagens, e sobretudo as personagens vivas que se encontraram no meu caminho, percebo traços distintos que tornam muitas vezes os dois sexos inimigos um do outro, sem que saibam sempre bem porquê. Um é afectivo, o outro activo; isso foi dito muitas vezes e raramente explicado.

Afectivo não é a mesma coisa que afectuoso. O que é preciso entender por esta palavra, é uma ligação mais estreita dos pensamentos  com as fontes da vida; esta ligação observa-se em todos os doentes, qualquer que seja o seu sexo; mas ela é  normalmente mais estreita na mulher, pela predominância natural  das funções  de gravidez e de aleitamento, e de tudo o que a isso se prende. Donde mudanças de humor cujas causas são naturais, mas cujos efeitos dão muitas vezes a aparência da fantasia, da incoerência, da obstinação. Sem nenhuma hipocrisia; porque é preciso uma profunda sabedoria, e muito rara com efeito, para explicar um movimento de humor pelas suas verdadeiras causas, sabido que a verdadeira causa muda também os nossos motivos. Se uma fadiga mal sentida me tira o gosto do passeio, faz-me encontrar também razões de ficar em casa. Ouve-se frequentemente sob o nome de pudor uma dissimulação das verdadeiras causas; creio que é mais uma ignorância das verdadeiras causas e como que uma transposição natural e quase inevitável das coisas do corpo em linguagem de alma. O homem amoroso fica como que estúpido diante desses textos.

O outro sexo é incompreensível na inacção. A sua função própria é caçar,  construir, inventar, experimentar. Fora destes caminhos ele aborrece-se, mas sempre sem disso se aperceber. Daí um movimento perpétuo por pequenas ocasiões; a sua boa vontade, dissimulando-o, agrava-o. Precisa dum alimento político ou industrial. E é comum que as mulheres tomem também por hipocrisia o que é um efeito da natureza. Pode-se ver crises desse género analisadas com profundidade nas Mémoires de deux jeunes mariées, de Balzac, e sobretudo na Ana Karénine, de Tolstoi.

O remédio para estes males parece-me estar na vida pública, que age de duas maneiras. Primeiro pelas relações de família e de amigos, que estabelecem com o casal relações de cortesia, absolutamente necessárias para dissimular todos os caprichos do sentimento, que têm sempre demasiadas ocasiões para se exprimirem. Dissimular, entendei bem; o que é só um movimento de humor nem sequer é sentido, quando não pode ser mostrado; eis por que quando se ama, a cortesia é mais verdadeira do que o humor. E depois a vida pública  ocupa o homem e desvia-o desta ociosidade de complacência, na qual nunca é natural, por muita benevolência que nisso ponha. É por isso que há sempre de que temer num casal demasiado isolado e que se alimenta somente de amor. São barcas demasiado ligeiras, demasiado móveis na onda, sem lastro. E a sabedoria por reflexão não pode fazer grande coisa contra isso. É a instituição que salva o sentimento.


Alain
(Tradução de José Ames)

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