XXXIII
Há duas espécies de homens, os que se habituam ao ruído e
os que tentam fazer calar os outros. Conheci muitos que, quando estão a
trabalhar ou enquanto esperam o sono, entram em fúria por causa duma voz que
murmura ou duma cadeira vivamente arrastada; conheci outros que se proíbem
absolutamente regular as acções de outrem;
gostariam mais de perder uma ideia preciosa ou duas horas de sono do que interromper
as conversas, os risos e os cantos do vizinho.
Estas duas espécies de pessoas fogem dos seus contrários e
procuram os seus semelhantes pelo mundo. É por isso que se encontram famílias
que diferem muito umas das outras pelas regras e as máximas da vida em comum.
Há famílias em que é tacitamente acordado que o que
desagrada a um é interdito a todos os outros. Um é incomodado pelo perfume das
flores, o outro pelo ruído das vozes; um exige o silêncio à noite e o outro o
silêncio de manhã. Este não quer que se toque na religião; aquele range os
dentes quando se começa a falar de política. Todos se reconhecem uns aos outros
um direito de “veto”; todos exercem esse direito com majestade. Um diz: "Vou
ter dores de cabeça todo o dia, por causa destas flores”, e o outro: "não
preguei olho toda a noite por causa da porta que empurraram com toda a força
pelas onze horas.” À hora da refeição, é como uma espécie de Parlamento, em que
cada um apresenta as suas reclamações.
Todos conhecem em breve este mapa
complicado, e a educação não tem outro objecto que de o ensinar às crianças.
Finalmente, todos ficam imóveis, e olham uns para os outros dizendo
banalidades. Isso faz uma paz sombria e uma felicidade aborrecida. Só que,
feitas as contas, cada um sendo mais constrangido por todos os outros do que os
constrange, todos se crêem generosos e repetem com convicção: "É preciso não
viver para si; é preciso pensar nos outros.”
Há também outras famílias onde a fantasia de cada um é
coisa sagrada, coisa amada, e onde ninguém sonha nunca que a sua alegria
pudesse ser importuna para os outros. Mas não falemos desses; são uns egoístas.
Alain
(Tradução de José Ames)
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