quarta-feira, 7 de março de 2012

EM FAMÍLIA

XXXIII



Há duas espécies de homens, os que se habituam ao ruído e os que tentam fazer calar os outros. Conheci muitos que, quando estão a trabalhar ou enquanto esperam o sono, entram em fúria por causa duma voz que murmura ou duma cadeira vivamente arrastada; conheci outros que se proíbem absolutamente  regular as acções de outrem; gostariam mais de perder uma ideia preciosa ou duas horas de sono do que interromper as conversas, os risos e os cantos do vizinho.

Estas duas espécies de pessoas fogem dos seus contrários e procuram os seus semelhantes pelo mundo. É por isso que se encontram famílias que diferem muito umas das outras pelas regras e as máximas da vida em comum.

Há famílias em que é tacitamente acordado que o que desagrada a um é interdito a todos os outros. Um é incomodado pelo perfume das flores, o outro pelo ruído das vozes; um exige o silêncio à noite e o outro o silêncio de manhã. Este não quer que se toque na religião; aquele range os dentes quando se começa a falar de política. Todos se reconhecem uns aos outros um direito de “veto”; todos exercem esse direito com majestade. Um diz: "Vou ter dores de cabeça todo o dia, por causa destas flores”, e o outro: "não preguei olho toda a noite por causa da porta que empurraram com toda a força pelas onze horas.” À hora da refeição, é como uma espécie de Parlamento, em que cada um apresenta as suas reclamações.  Todos conhecem em breve  este mapa complicado, e a educação não tem outro objecto que de o ensinar às crianças. Finalmente, todos ficam imóveis, e olham uns para os outros dizendo banalidades. Isso faz uma paz sombria e uma felicidade aborrecida. Só que, feitas as contas, cada um sendo mais constrangido por todos os outros do que os constrange, todos se crêem generosos e repetem com convicção: "É preciso não viver para si; é preciso pensar nos outros.”

Há também outras famílias onde a fantasia de cada um é coisa sagrada, coisa amada, e onde ninguém sonha nunca que a sua alegria pudesse ser importuna para os outros. Mas não falemos desses; são uns egoístas.


Alain
(Tradução de José Ames)

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