XLIII
Um prefeito da polícia é, para o meu gosto, o homem mais
feliz. Porquê? Porque age sempre, e sempre em condições novas e imprevisíveis;
ora contra o fogo, ora contra a água; ora contra o desabamento, ora contra o
esmagamento; também contra a lama, a poeira, as doenças, a pobreza; enfim
muitas vezes também contra a cólera, e algumas contra o entusiasmo. Assim, em cada minuto da sua vida, este homem feliz
se encontra em presença dum problema bem determinado, que exige uma acção bem
determinada. Logo, nada de regras gerais; nada de papelada; nada de
recriminações nem de consolações em forma de relatório administrativo; ele
deixa isso a alguns burocratas. Quanto a ele, é percepção e acção. Ora, quando
estas duas válvulas, percepção e acção, estão abertas, um rio de vida
transporta o coração do homem como uma pluma ligeira.
Está aí o segredo dos jogos. Jogar o bridge, é fazer
correr a vida da percepção à acção. Jogar o futebol, ainda melhor. Sobre um
dado novo, imprevisível, desenhar prontamente uma acção, e imediatamente,
fazê-la, isso preenche a vida humana tanto quanto se pode desejar. Que quereis
desejar então? Que quereis temer? O tempo devora o lamento. Perguntamo-nos
muitas vezes qual pode ser a vida interior dum ladrão e de um bandido. Creio
que ele não tem nenhuma. Sempre à espreita, ou dormindo. Toda a sua força de
previsão é como a do batedor, diante dos seus pés e das suas mãos. É por isso
que a ideia da punição não lhe ocorre, nem nenhuma outra. Esta máquina cega e
surda tem qualquer coisa de atemorizante. Mas em qualquer homem a acção
extingue a consciência; esta violência sem respeito ouve-se no golpe de machado do lenhador; é menos
sensível nas diligências do homem de Estado, mas reencontramo-la frequentemente
nos efeitos. Espantar-nos-íamos menos de achar o homem duro e insensível como o
machado, se notássemos que ele também não se poupa. A força não tem piedade,
nem sequer de si mesma.
Porquê a guerra? Porque os homens se afogam então na
acção. O seu pensamento é como as lâmpadas nos carros eléctricos que baixam no
arranque; digo o seu pensamento reflectido. Donde uma força temível na acção;
ela justifica-se à sua maneira, porque extingue a lâmpada interior. Através do
que uma chusma de paixões vis se extinguem, todas aquelas que a reflexão alimenta,
como melancolia, desgosto da vida, ou então intriga, hipocrisia, rancor, ou
então amor romanesco, ou então vício refinado. Mas também se extingue a justiça
na corrente da acção. O prefeito da polícia bate-se contra o motim da mesma
maneira que se bate contra a água e o fogo. O amotinado apaga também a sua
lâmpada. Noite bárbara. Foi por isso que houve torcionários que se metiam nos
cantos, e juízes que recebiam confissões. Foi por isso que houve forçados
presos aos bancos, e que ali agonizavam e morriam, acompanhando o movimento dos
remos; e outros homens que chicoteavam. Os que chicoteavam só pensavam no seu
chicote. Qualquer estado de barbárie durará se se estabelecer. Um prefeito da
polícia é o homem mais feliz; não diria que é o mais útil dos homens. A
ociosidade é a mãe de todos os vícios, mas de todas as virtudes também.
Alain
(Tradução de José Ames)
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