quarta-feira, 21 de março de 2012

O JOGO




“Lastimo, dizia alguém, um homem que vive só, que não tem necessidades nem inquietudes que os seus recursos não possam acalmar, lastimo-o quando a idade ou a doença o tocarem um pouco; porque vai pensar demasiado nele. Um pai de família, sempre preocupado, e que não consegue livrar-se das suas dívidas, é bem mais feliz apesar da aparência, porque não tem tempo de pensar nas suas digestões.” Eis uma razão de se manterem algumas pequenas dívidas, ou de nos consolarmos se as temos.

Quando se aconselham os homens a procurar uma vida média, tranquila e segura, não se lhes diz o suficiente que lhes vais ser preciso também  muita sabedoria para a suportar. O desprezo das riquezas e das honras é fácil em suma; o que é propriamente difícil, é, uma vez que realmente se desprezam, não se aborrecer. O ambicioso corre sempre atrás de alguma coisa  na qual acredita que encontrará uma felicidade rara; mas a sua principal felicidade, é estar muito ocupado; e mesmo quando se sente infeliz por causa duma decepção, é ainda feliz pela sua infelicidade. É que ele vê o remédio; e o verdadeiro remédio, é que ele vê o remédio. A necessidade estendida como um grande país, bem clara, e fora de nós, vale sempre mais do que esta necessidade encolhida que sentimos no nosso interior.

A paixão do jogo mostra sem roupagens, de alguma maneira,  sem ornamento estranho, esta necessidade de aventura; porque o jogador nunca está seguro, e creio que é mesmo isso que lhe interessa. Por isso, o verdadeiro jogador não aprecia esses jogos em que a atenção, a prudência, o saber, corrigem muito a sorte. Pelo contrário,  um jogo como a roleta, em que não faz mais do que esperar e arriscar, tanto mais o arrebata. São catástrofes  deliberadas num certo sentido; porque ele se diz a cada instante. “O próximo golpe vai arruinar-me talvez, se eu quiser.” É como uma viagem de exploração muito perigosa, mas com esta condição que, com apenas um consentimento de espírito, estaria de volta a casa, em segurança. Mas é o que explica também a atracção dos jogos de azar: porque nada neles força, e só arriscamos se quisermos. Esta força agrada.

A guerra tem sem dúvida alguma coisa do jogo; é o  aborrecimento que faz a guerra. E a prova disso é que é sempre o homem que tem menos trabalhos e  preocupações que é o mais guerreiro. Se se apreendessem bem as causas, seríamos menos tocados pelas declamações. O homem  rico e ocioso parece muito forte quando diz: “A vida é fácil para mim; se me exponho a tantos perigos, se invoco de todo o meu coração tantos perigos temíveis, é preciso portanto  que veja nisso alguma razão invencível ou alguma necessidade inevitável.” Mas não. É apenas um homem que se aborrece. E ele aborrecer-se-ia menos se trabalhasse da manhã à noite. Assim a desigual repartição dos bens tem por cima de tudo este inconveniente que condena ao aborrecimento um grande número de homens bem alimentados; donde acontece que eles se suscitem temores e cóleras que os ocupem. E estes sentimentos de luxo são o fardo mais pesado dos pobres.


Alain
(Tradução de José Ames)

Sem comentários:

Enviar um comentário