quinta-feira, 22 de março de 2012

ESPERANÇA

LXI


Um incêndio fazia-me pensar no Seguro. Eis um deus que não é amado, e longe disso, como a Fortuna. É temido; trazem-lhe magras oferendas, sem nenhum entusiasmo. E isso é fácil de compreender; os benefícios do seguro só se mostram ao mesmo tempo que a desgraça. O maior bem é evidentemente não ter o fogo em casa; mas é um bem de todos os minutos, que não se sente, como o de ter os seus braços e as suas pernas. Tendo em conta esta felicidade negativa, o dinheiro com o qual se paga parece tolamente dado. Só vejo as grandes empresas pagarem o prémio sem tristeza, como pagam tudo; mas lastimo também esses capitães do comércio que não sabem ao fim do dia se perderam ou ganharam; sem dúvida o seu prazer real vem do poder que eles exercem sobre um exército de caixeiros.

Aqueles que têm grandes esperanças e pequenos meios não podem amar o seguro. Imagina-se um comerciante que se segurasse contra a ruína? Nada seria mais fácil se eles pusessem todos em comum os lucros que ultrapassam o ordinário. Assim, as casas associadas prosperariam, no conjunto, passavelmente; os comerciantes associados seriam como funcionários, com um vencimento fixo  e uma reforma assegurados; se quisessem, assegurados dum médico, dum cirurgião, duma casa de convalescença; assegurados duma viagem de núpcias e duma série de viagens de prazer. É a própria sabedoria; e é muito belo nos livros. Mas é preciso não esquecer que, quando a vida material está assim assegurada, no pleno sentido da palavra, toda a felicidade está por fazer. Quem não tem em si os recursos, o aborrecimento espreita-o e em breve toma conta dele.

A deusa Lotaria, que os antigos chamavam a Fortuna cega, é muito mais ternamente adorada. Aqui esperanças imensas e, em compensação, o único receio de não ganhar, que não é nada. Se se imagina um escritório de todos os seguros, seria preciso escrever na porta: “Vós que entrais, abandonai toda a esperança.” Contra o que todos os comerciantes de esperança facilmente triunfam. O que não vem só da ambição, que é vaidade no fundo, mas antes  desta invenção infatigável que vai sempre à frente da acção, e que é luz e alegria em todo o ofício. Perrette na sua vasilha de leite não vê repouso nenhum, mas, ao contrário, o trabalho. Vitelo, vaca, porco, ninhada, são cuidados. Cada um, nos seus trabalhos de todos os dias, descobre outros sobre os quais  gostaria de se lançar. A esperança abate o muro e percebe a ordem dos legumes ou a ordem das flores em lugar da erva daninha e do matagal. O seguro aprisiona.

A paixão do jogo é admirável de considerar. O homem debate-se aí com um acaso despojado, um acaso que se quis e se inventou. Há um seguro gratuito contra  os riscos do jogo; basta não jogar. Mas quase todos aqueles que conhecem o ócio se lançam sobre as cartas ou os dados, adorando as irmãs gémeas e inseparáveis, a esperança e o medo. E talvez que o homem esteja mais orgulhoso de ter ganho  por um feliz acaso do que de ter bem jogado. O que exprime a palavra felicitar; porque felicitar é propriamente louvar o sucesso, e não o mérito. Antiga ideia do favor dos deuses, que  sobreviveu aos deuses.  Se o homem não fosse assim, a justiça igualitária reinaria há muito tempo, porque não é difícil. Mas o homem detesta o que não é difícil. César reina pela ambição de todos; é a nossa esperança coroada.


Alain
(Tradução de José Ames)

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