LXI
Um incêndio fazia-me pensar no Seguro. Eis um deus que não
é amado, e longe disso, como a Fortuna. É temido; trazem-lhe magras oferendas,
sem nenhum entusiasmo. E isso é fácil de compreender; os benefícios do seguro
só se mostram ao mesmo tempo que a desgraça. O maior bem é evidentemente não
ter o fogo em casa; mas é um bem de todos os minutos, que não se sente, como o de
ter os seus braços e as suas pernas. Tendo em conta esta felicidade negativa, o
dinheiro com o qual se paga parece tolamente dado. Só vejo as grandes empresas
pagarem o prémio sem tristeza, como pagam tudo; mas lastimo também esses
capitães do comércio que não sabem ao fim do dia se perderam ou ganharam; sem
dúvida o seu prazer real vem do poder que eles exercem sobre um exército de
caixeiros.
Aqueles que têm grandes esperanças e pequenos meios não
podem amar o seguro. Imagina-se um comerciante que se segurasse contra a ruína?
Nada seria mais fácil se eles pusessem todos em comum os lucros que ultrapassam
o ordinário. Assim, as casas associadas prosperariam, no conjunto,
passavelmente; os comerciantes associados seriam como funcionários, com um
vencimento fixo e uma reforma
assegurados; se quisessem, assegurados dum médico, dum cirurgião, duma casa de
convalescença; assegurados duma viagem de núpcias e duma série de viagens de
prazer. É a própria sabedoria; e é muito belo nos livros. Mas é preciso não
esquecer que, quando a vida material está assim assegurada, no pleno sentido da
palavra, toda a felicidade está por fazer. Quem não tem em si os recursos, o
aborrecimento espreita-o e em breve toma conta dele.
A deusa Lotaria, que os antigos chamavam a Fortuna cega, é
muito mais ternamente adorada. Aqui esperanças imensas e, em compensação, o
único receio de não ganhar, que não é nada. Se se imagina um escritório de
todos os seguros, seria preciso escrever na porta: “Vós que entrais, abandonai
toda a esperança.” Contra o que todos os comerciantes de esperança facilmente
triunfam. O que não vem só da ambição, que é vaidade no fundo, mas antes desta invenção infatigável que vai sempre à
frente da acção, e que é luz e alegria em todo o ofício. Perrette na sua
vasilha de leite não vê repouso nenhum, mas, ao contrário, o trabalho. Vitelo,
vaca, porco, ninhada, são cuidados. Cada um, nos seus trabalhos de todos os
dias, descobre outros sobre os quais
gostaria de se lançar. A esperança abate o muro e percebe a ordem dos
legumes ou a ordem das flores em lugar da erva daninha e do matagal. O seguro
aprisiona.
A paixão do jogo é admirável de considerar. O homem
debate-se aí com um acaso despojado, um acaso que se quis e se inventou. Há um
seguro gratuito contra os riscos do
jogo; basta não jogar. Mas quase todos aqueles que conhecem o ócio se lançam
sobre as cartas ou os dados, adorando as irmãs gémeas e inseparáveis, a
esperança e o medo. E talvez que o homem esteja mais orgulhoso de ter
ganho por um feliz acaso do que de ter
bem jogado. O que exprime a palavra felicitar; porque felicitar é propriamente
louvar o sucesso, e não o mérito. Antiga ideia do favor dos deuses, que sobreviveu aos deuses. Se o homem não fosse assim, a justiça
igualitária reinaria há muito tempo, porque não é difícil. Mas o homem detesta
o que não é difícil. César reina pela ambição de todos; é a nossa esperança
coroada.
Alain
(Tradução de José Ames)
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