sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O SORRISO

XII


Queria dizer do mau humor que ele não é menos causa do que efeito; estava mesmo inclinado a dizer que a maior parte das nossas doenças resultam dum esquecimento da cortesia, quero dizer duma violência do corpo humano sobre si próprio. O meu pai, que pelo seu ofício observava os animais, dizia que, submetidos no entanto às mesmas condições e tanto quanto nós dispostos a abusar delas, eles têm muito menos doenças, e isso espantava-o. É que os animais não têm humor, ou seja esta irritação, ou esta fadiga, ou este aborrecimento que se mantêm pelo pensamento. Por exemplo, cada um sabe que o nosso espírito se escandaliza de não dormir quando  quer, e que, por esta inquietação, se coloca justamente  no caso de não poder dormir. Ou então, doutras vezes, receando o pior, reanima pelas suas fantasias um estado de ansiedade que afasta a cura. Basta a vista duma escada para que o coração se aperte, como se diz tão bem, por um efeito da imaginação que nos corta a respiração, no momento mesmo  em que temos necessidade de respirar amplamente. E a cólera é propriamente falando uma doença, tal qual como a tosse; pode-se mesmo considerar a tosse como um tipo de irritação; porque ela tem de facto a sua causa num estado do corpo; mas logo a imaginação espera a tosse  e até a procura, pela louca ideia de se livrar dela exasperando-a, como fazem aqueles que se coçam. Sei muito bem que os animais também se coçam, e ao ponto de se prejudicarem; mas é um perigoso privilégio do homem o poder, se ouso dizer, coçar-se só pelo pensamento, e directamente, pelas suas paixões, excitar o  coração e empurrar as ondas de sangue aqui e ali.

Passa ainda quanto às paixões; não se livra delas quem quer; só se pode alcançar isso por um longo desvio de doutrina, como aquele que é suficientemente sábio para não procurar as honras, a fim de não ser levado a desejá-las. Mas o mau humor ata-nos, sufoca-nos e estrangula-nos, só por este efeito de que nós nos dispomos segundo um estado do corpo que inclina à tristeza, e de modo a manter esta tristeza. Aquele que se aborrece tem uma maneira de se sentar, de se levantar, de falar, que é adequada a entreter o aborrecimento. O irritado aperta-se de outra maneira; e o desencorajado desaperta, quase diria que desengata os músculos  tanto quanto pode, o mais longe possível de se dar a si próprio através de qualquer acção essa mensagem enérgica de que precisa.

Reagir contra o humor, não é tarefa do juízo; aí não pode nada; mas é preciso mudar a atitude e dar-se o movimento conveniente; porque os nossos músculos motores são a parte de nós sobre a qual temos poder. Sorrir, encolher os ombros, são manobras conhecidas contra as preocupações; e notai que estes movimentos tão fáceis mudam logo a circulação visceral. Podemos espreguiçar-nos voluntariamente e bocejar, o que é a melhor ginástica contra a ansiedade e a impaciência. Mas ao impaciente não ocorrerá mimar assim a indiferença; do mesmo modo não virá ao espírito daquele que sofre de insónia fazer de conta que dorme. Muito pelo contrário, o humor representa-se a si mesmo e assim se entretém. Por falta de sabedoria,  procuramos a cortesia; buscamos a obrigação de sorrir. É por isso que a sociedade dos indiferentes é tão amada.
Alain
(Tradução de José Ames)

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