terça-feira, 24 de janeiro de 2012

MALES DE ESPÍRITO

IX

A imaginação é pior do que um carrasco chinês: ela doseia o medo; faz-nos saborear como apreciadores. Uma catástrofe real não bate duas vezes no mesmo ponto; o golpe esmaga a vítima; um instante antes, ela era como nós somos quando não há catástrofe. Um passeante é atropelado por um automóvel, lançado a vinte metros e morto na hora. O drama acabou; nem sequer começou; não durou sequer; é pela reflexão que nasce o que durou.

Do mesmo modo, eu que penso no acidente, julgo muito mal. Julgo como um homem que, sempre a ponto de ser esmagado, nunca o seria. Imagino este automóvel que  chega; de facto, eu salvar-me-ia se me apercebesse duma coisa dessas; mas não me salvo, porque me coloco no lugar daquele que foi esmagado. Ofereço-me como que uma imagem cinematográfica do meu próprio esmagamento, mas uma visão vagarosa, e mesmo de tempos a tempos parada; e recomeço; bem vivo, morro mil vezes. Pascal dizia que a doença é insuportável para aquele que se encontra bem, justamente por se encontrar bem. Uma doença grave deixa-nos acabrunhados sem dúvida o suficiente para que não sintamos mais enfim do que a acção presente. Um facto tem isso de bom, por muito mau que seja, que põe  termo ao jogo dos possíveis, que não está para vir, e que nos mostra um futuro novo com cores novas. Um homem que sofre espera, como uma felicidade maravilhosa, um estado medíocre o qual, na véspera, teria feito talvez a sua infelicidade. Nós somos mais sábios do que acreditamos que somos.

Os males reais vão depressa, como o carrasco quando se aproxima. Corta os cabelos e a camisa, amarra os braços, empurra o homem.  Isso parece-me longo, porque penso nisso, e volto a pensar, porque tento ouvir o ruído das tesouras, sentir a mão dos ajudantes sobre os meus braços. De facto, uma impressão expulsa a outra, e os pensamentos reais do condenado são tremores sem dúvida, como os troços dum verme; nós queremos que o verme sofra por ser cortado aos bocados; mas em que bocado está o sofrimento do verme?

Sofremos por reencontrar um velho que voltou à infância, ou um bêbedo estupidificado que nos mostra “o túmulo dum amigo”. Sofremos, porque queremos que eles sejam ao mesmo tempo aquilo que  já não são. Mas a natureza andou o seu caminho; os seus passos são felizmente irreparáveis: cada estado novo torna impossível o seguinte; todo este desgosto que concentrais num ponto está espalhado pela estrada do tempo; é a infelicidade deste instante que transporta o instante seguinte. Um homem velho, não é um homem novo que sofre a velhice; um homem que morre, não é um vivo que morre.

É por isso que só  os vivos podem ser atingidos pela morte, que só os felizes podem conceber o peso do infortúnio; e, para dizer tudo,  podemos ser mais sensíveis aos males de outrem, que tem os seus próprios males, e sem hipocrisia. Daí um falso juízo sobre a vida, que envenena a vida, se não tomamos cuidado. É preciso pensar o real presente com todas as nossas forças, pela  ciência verdadeira, em vez de representar a tragédia.

                                                            12 de Dezembro de 1910

Alain
(Tradução de José Ames)
       

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