segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

DA IMAGINAÇÃO

 VIII


Quando o médico vos recose a pele da cara, na sequência de algum pequeno acidente, há, entre os acessórios, um copo de rum que serve para reanimar a coragem que desfalece. Ora, comummente, não é o paciente que bebe o copo de rum, mas é o amigo espectador, que, sem ser advertido pelos seus próprios pensamentos, fica dum branco esverdeado e à beira de perder os sentidos. O que mostra, contra o moralista, que nem sempre temos força suficiente para suportar os males dos outros.

Este exemplo é bom de considerar porque mostra um género de piedade que não depende nada das nossas opiniões. Directamente a visão destas gotas de sangue e desta pele que resiste à agulha curva, produz uma espécie de horror difuso, como se retivéssemos o nosso próprio sangue, como se endurecêssemos a nossa própria pele. Este efeito da imaginação é invencível pelo pensamento, porque a imaginação é aqui sem pensamento. O raciocínio da sabedoria seria evidente e bem fácil de seguir, porque não é a pele do espectador que está aberta; mas este raciocínio não tem qualquer acção sobre o acontecimento; o rum persuade melhor.

Donde compreendo que os nossos semelhantes têm um grande poder sobre nós, só pela sua presença, apenas pelos sinais das suas emoções e das suas paixões. A piedade, o terror, a cólera, as lágrimas não esperam que eu me interesse em espírito pelo que vejo. A vista dum ferimento horrível muda a face do espectador, e esta face pelo seu lado anuncia  o horrível e atinge o diafragma do espectador,  antes de que ele saiba o que o outro vê. E a descrição, por muito talento que aí se ponha, é menos capaz de comover do que um rosto emocionado. O toque da expressão é directo e imediato. Do mesmo modo, é descrever muito mal a piedade se se diz que aquele que a experimenta pensa nele próprio e se vê no lugar do outro. Esta reflexão, quando vem, só vem depois da piedade; pela imitação do semelhante, o corpo dispõe-se imediatamente segundo o sofrimento, o que produz primeiro uma ansiedade sem nome; o homem pede contas a si mesmo deste movimento do coração que lhe surge como uma doença.

Poder-se-ia também explicar a vertigem por um raciocínio; o homem diante do abismo dir-se-ia que podia cair; mas se  se segura ao parapeito, diz-se pelo contrário que não pode cair; a vertigem nem por isso o percorre menos dos calcanhares à nuca. O primeiro efeito da imaginação é sempre no corpo. Ouvi o relato dum sonho em que o sonhador se encontrava em presença duma execução capital iminente, sem que soubesse se era dele ou de um outro, e sem que mesmo pudesse exprimir qualquer opinião sobre isso; só que sentia uma dor nas vértebras cranianas. Tal é a imaginação pura. A alma separada, a qual queremos sempre supor  generosa e sensível, mas que seria pelo contrário, me parece, sempre económica no seu interesse; o corpo vivo é mais belo, que sofre pela ideia e se cura pela acção. Não sem tumulto; mas também o verdadeiro pensamento tem mais que superar do que uma dificuldade de lógica; e é um resto de tumulto que faz os belos pensamentos. A metáfora é a parte do corpo humano neste jogo heróico.



Alain
(Tradução de José Ames)

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