sábado, 21 de janeiro de 2012

DAS PAIXÕES

VI
 

Suporta-se menos bem a paixão do que a doença: cuja causa está sem dúvida nisto, que a nossa paixão nos parece resultar inteiramente do nosso carácter e das nossa ideias,  mas transporta com isso os sinais duma necessidade invencível. Quando um ferimento físico nos faz sofrer, reconhecemos nisso a marca da necessidade que nos rodeia; e tudo está bem em nós, salvo o sofrimento. Quando um objecto presente, pelo seu aspecto ou pelo ruído que faz, ou pelo seu odor, provoca em nós movimentos vivos de medo ou de desejo, podemos ainda acusar as coisas e fugir delas, a fim de reconquistarmos o equilíbrio. Mas para a paixão não temos qualquer esperança; porque se eu amo ou se odeio, não é necessário que o objecto esteja diante dos meus olhos; imagino-o, e mudo-o até, por um trabalho interior que é como um poema; tudo me reconduz aí; os meus raciocínios são sofísticos e parecem-me bons; e é muitas vezes a lucidez da inteligência  que me pica no sítio certo. Não se sofre tanto pelas emoções; um belo medo faz-nos fugir e não pensamos então peva em nós próprios. Mas a vergonha de ter tido medo, se nos envergonham, tornar-se-á  cólera ou  discurso. Sobretudo a vergonha aos nossos próprios olhos, quando estamos sós, e principalmente à noite, no repouso forçado eis o que é insuportável, porque então saboreamos, se assim se pode dizer, com vagar, e sem esperança; lançamos todas as flechas e todas recaem sobre nós; somos nós o nosso próprio inimigo. Quando o apaixonado se assegura que não está doente, e que nada o impede de momento de viver bem,  chega a esta reflexão: “ A minha paixão sou eu; e é mais forte do que eu.”

Há sempre remorso e temor na paixão, e pela razão, me parece; porque nos dizemos: “Deverei  tão mal governar-me? Deverei assim remoer as mesmas coisas?” Daí uma humilhação. Mas um medo também, porque nos dizemos: ”É o meu próprio pensamento que está envenenado; os meus próprios raciocínios são contra mim; que poder mágico é este que conduz o meu pensamento?” A magia está aqui no seu lugar. Creio que é a força das paixões e a escravatura interior que conduziram os homens  à ideia dum poder oculto e duma má sorte  lançada por uma palavra ou um olhar. Não podendo julgar-se doente, o apaixonado julga-se maldito; e esta ideia fornece-lhe desenvolvimentos sem fim para se torturar ele mesmo. Quem dará conta destes vivos sofrimentos que não estão em parte nenhuma? E a perspectiva dum suplício sem fim, e que se agrava até de minuto em minuto, faz com que corram para a morte com alegria.

Muito se escreveu sobre isso; e os estóicos deixaram-nos belas reflexões contra o medo e contra a cólera. Mas Descartes é o primeiro, e disso se gaba, a visar o alvo no seu Tratado das Paixões. Ele mostrou que a paixão, embora esteja toda num estado dos nossos pensamentos, depende apesar disso  dos movimentos que se fazem no nosso corpo; é pelo movimento do sangue, e pelo curso de não se sabe que fluido que viaja nos nervos  e no cérebro, que as mesmas ideias voltam sempre, e tão vivas, no silêncio da noite; esta agitação física escapa-nos normalmente;  só vemos os efeitos; ou cremos então que ela resulta da paixão enquanto que ao contrário é o movimento corporal que alimenta as paixões. Se se compreendesse bem isso, poupar-nos-íamos todo o juízo de reflexão, seja sobre os sonhos, seja sobre as paixões, que são sonhos melhor ligados; reconhecer-se-ia nisso a necessidade exterior à qual estamos todos submetidos, em vez de nos acusarmos a nós mesmos e de a nós mesmos nos amaldiçoarmos. Dir-nos-íamos:” Estou triste; vejo tudo negro; mas os acontecimentos não tem nada a ver com isso; os meus arrazoados não têm nada a ver com isso; é o meu corpo que quer arrazoar; são opiniões de estômago.”


Alain
(tradução de José Ames)
9 de Maio de 1911

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