segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

DRAMAS

XIV


Os que escaparam desse grande naufrágio têm recordações terríficas. Essa muralha de gelo que aparece na escotilha, essa hesitação e essa esperança dum momento; depois o espectáculo da grande construção iluminada sobre o mar tranquilo; depois a proa que se afunda, as luzes que se apagam de repente; os gritos, imediatamente, de mil e oitocentas pessoas; a popa do navio erigindo-se como uma torre, e as máquinas caindo sobre a proa com o ruído de cem trovões; enfim esse grande caixão deslizando águas abaixo sem remoinhos; a noite fria reinando na solidão; depois disso o frio, o desespero, e enfim a salvação. Drama refeito muitas vezes durante essas noites em que não pregaram olho; em que as recordações estão agora ligadas; em que cada parte toma um significado trágico, como numa peça bem composta.

Quando o dia se ergue no castelo, em Macbeth, há um porteiro que olha o dia que nasce e as andorinhas; quadro cheio de frescura e de simplicidade e de pureza; mas nós sabemos que o crime foi cometido. O horror trágico está aqui no seu cúmulo. Da mesma maneira, nas recordações do naufrágio, cada momento é esclarecido pelo que se vai seguir. Assim a imagem desta construção toda iluminada, tranquila, sólida sobre o mar, era reconfortante no momento; na recordação, nos sonhos que se vão ter, na imagem que eu me faço, é o momento duma espera horrível. O drama desenrola-se agora para um espectador que sabe, que compreende, que degusta a agonia minuto a minuto; mas, na acção mesma, este espectador não existe. Falta a reflexão; as impressões mudam ao mesmo tempo que o espectáculo; e melhor dizendo, não há espectáculo, mas somente percepções inesperadas, não interpretadas, mas ligadas, e sobretudo acções que submergem os pensamentos, um naufrágio de pensamentos a cada instante; cada imagem aparece e morre. O acontecimento matou o drama. Os que morreram não sentiram nada.

Sentir, é reflectir, é recordar-se. Cada um pôde observar a mesma coisa, nos pequenos e grandes acidentes; a novidade, o inesperado, a acção premente ocupam toda a atenção, sem nenhum sentimento; aquele que tenta, com toda a sinceridade, reconstituir o próprio acontecimento, gostaria de dizer que vive como num sonho, sem compreender, sem prever; mas o terror que ele experimenta agora ao pensar nisso arrasta-o para uma narração dramática. É assim nos grandes desgostos, quando se acompanha a doença de alguém até à sua morte. Ficamos como que estúpidos e inteiramente entregues às acções  e às percepções de cada momento. Mesmo se se dá aos outros a imagem do terror e do desespero, não é nesse momento que se sofre. E aqueles que demasiado pensaram nas suas penas, quando as contam para fazer chorar os outros, encontram ainda nessa acção um pequeno alívio.

Sobretudo, quaisquer que possam ter sido os sentimentos daqueles que morreram, a morte tudo apagou; antes que tivéssemos aberto o nosso jornal, o seu suplício já tinha findado; estavam curados. Ideia familiar a todos, que me faz pensar  que não se crê realmente numa vida depois da morte. Mas, na imaginação dos sobreviventes, os mortos nunca param de morrer.


Alain
(Tradução de José Ames)



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