sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

MELANCOLIA

V
 

Há algum tempo, via um amigo que sofria dum cálculo no rim, e que andava de humor muito sombrio. Toda a gente sabe que este género de doença torna as pessoas tristes; como eu lho dizia, ele concordou logo comigo; donde concluí enfim: “Uma vez que você sabe que esta doença dá tristeza, não se deve de modo nenhum  admirar por estar triste, nem ficar com humor.” Este belo raciocínio fê-lo rir com vontade, o que não era um resultado desprezável. Não é menos verdade que, sob esta forma um pouco ridícula, eu dizia uma coisa importante, e raramente considerada por aqueles que sofrem de males.

A profunda tristeza resulta sempre dum estado doentio do corpo; enquanto um desgosto não é doença, em breve nos deixa alguns instantes de paz, e bem mais do que cremos; e o próprio pensamento dum mal espanta mais do que aflige, enquanto a fadiga ou alguma pedra algures alojada, não vem agravar os nossos pensamentos. A maior parte dos homens negam isso, e mantêm que o que os faz sofrer na infelicidade é o pensar que são infelizes; e eu admito que, quando nós próprios nos sentimos infelizes, é muito difícil não crer que certas imagens têm picos e garras, e que elas mesmas nos torturam.

Consideremos no entanto os doentes que se chamam melancólicos;  veremos que eles sabem encontrar em qualquer pensamento que seja as razões de estarem tristes; toda a palavra os fere; se os lastimais, sentem-se humilhados e infelizes sem remédio; se não os lastimais,  dizem-se que já não têm amigos e que estão sozinhos no mundo. Assim esta agitação dos pensamentos só serve para chamar a atenção deles para o estado desagradável em que a doença os mantém; e, no momento em que argumentam contra si próprios, e são esmagados pelas razões que crêem ter de estarem tristes, não fazem mais do que ruminar a sua tristeza como verdadeiros apreciadores. Ora, os melancólicos oferecem-nos uma imagem ampliada de todo o homem aflito. O que é evidente neles, que a sua tristeza é doença, deve ser verdadeiro em todos; a exasperação das penas vem sem dúvida de todo o arrazoado que aí metemos, e através do qual, de algum modo, apalpamos o ponto sensível.

Desta espécie de loucura, que leva as paixões  à fúria, nos podemos livrar dizendo-nos, justamente, que a tristeza é doença apenas, e deve ser suportada como doença, sem tantas razões e arrazoado. Com isso dispersamos o cortejo dos discursos ácidos; tomamos o nosso desgosto como uma dor de barriga; atinge-se uma melancolia muda;  uma espécie de estupor quase sem consciência; não se acusa mais; suporta-se; entretanto repousamos, e assim se combate a tristeza justamente como é preciso. É para isso que tendia a oração, e não é mal achado; diante da imensidade do objecto, diante desta sabedoria que  tudo sabe e tudo pesou, diante desta majestade incompreensível, diante desta justiça impenetrável, o homem pio renunciava a formar o pensamento; não há de certo oração, feita de boa vontade, que não obtenha de imediato muito; vencer o furor, é muito; mas chega-se também, pelo bom senso, a  darmo-nos esta espécie de ópio da imaginação que nos desvia de contarmos os nossos males.



Alain
(Tradução de José Ames)
6 de Fevereiro de 1911



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