quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

MEDICINA

XI


“Conheço, diz o homem da ciência, um número importante de verdades, e formo uma ideia suficiente daquelas que ignoro. Sei o que é uma máquina, e como um parafuso que salta pode destruir tudo, por falta de um pouco de cuidado, por falta da atenção de alguns minutos, e sempre porque o homem da arte não foi consultado em tempo oportuno. É por isso que eu reservo uma parte do meu tempo  à vigilância desta máquina complexa a que eu chamo o  meu corpo. É por isso que logo que há um sintoma de fricção ou um rangido, me entrego ao homem da arte para que ele explore a parte doente ou supostamente tal. E através destes cuidados, segundo as advertências do ilustre Descartes, estou seguro, tirando os golpes da sorte, de prolongar a minha vida tanto quanto o permite o instrumento que  recebi dos meus pais. E eis a minha sabedoria.” Ele falava assim, mas vivia tristemente.

“Conheço, diz o leitor, um número importante de ideias falsas que complicaram a vida dos homens em tempos de credulidade. Esses erros instruíram-me quanto a verdades importantes, de que os nossos sábios fazem uma fraca ideia. A imaginação, de acordo com o que li, é a rainha deste mundo humano; e o grande Descartes, no seu Tratado das Paixões, explicou-me suficientemente as causas. Porque não é possível que uma inquietação, mesmo se consigo vencê-la, não inflame as minhas entranhas; não é possível que uma surpresa não altere as batidas do meu coração. E só a ideia duma minhoca encontrada na minha salada me dá uma náusea real. Todas estas loucas ideias, mesmo que não acreditasse nelas, me agarram no fundo de mim mesmo e nas partes vitais, modificando bruscamente o curso do sangue e dos humores, coisa que a minha vontade não poderia fazer. Ora bem, quaisquer que sejam os inimigos invisíveis que engulo a cada bocado, não podem mais sobre o meu coração nem sobre o meu estômago que as mudanças do meu humor ou as divagações da minha imaginação. É necessário, primeiro, que eu esteja contente, tanto quanto posso; é necessário, em segundo lugar, que afaste este género de preocupações que têm por objecto o meu próprio corpo, e  por efeito perturbar todas as funções vitais. Porque, não se vê na história de todos os povos, homens que morreram por se crerem malditos? Não se vê como funcionavam bem os sortilégios, apenas o interessado estivesse  ao corrente deles? Ora, o que pode fazer o melhor dos médicos, se não enfeitiçar-me? E que  bem posso esperar das suas pílulas, quando uma única palavra sua altera as batidas do meu coração? Não sei bem o que posso esperar da medicina, mas sei bem o que posso recear. E, por minha fé, qualquer desarranjo que sinta nesta máquina a que chamo eu, consolo-me ainda melhor pela ideia  que é a minha atenção e o meu cuidado mesmo que faz quase toda a desordem, e que o primeiro e o mais são remédio é portanto  não temer mais um mal de estômago ou um mal de rins do que um calo no pé. Que um  pouco de epiderme endurecida possa fazer sofrer tanto, não é uma boa lição de paciência?”

     23 de Março de 1922

Alain
(Tradução de José Ames)

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