sábado, 28 de janeiro de 2012

ACIDENTES

XIII


Cada um já meditou algum momento sobre a temível queda. A enorme viatura perdeu uma roda e inclinou-se primeiro muito lentamente talvez; e esses infelizes,  um momento suspensos acima do abismo, gritaram duma forma inumana. Cada um imagina muito facilmente a cena, e alguns, em sonho,  experimentarão esse começo de queda e a espera do choque. Mas é porque eles têm tempo para deliberar; eles mimam a coisa; saboreiam o medo; param de cair para pensar nisso. Uma mulher disse-me um dia: "Eu que tenho medo de tudo, tenho de morrer um dia.” Felizmente, a força das coisas, quando nos agarra, não nos dá nenhuma pausa; a cadeia dos instantes é como que rompida; assim o extremo sofrimento não é mais do que poeira de sofrimento; impalpável. O horror é soporífero. O clorofórmio, segundo a verosimilhança,  adormece só a parte mais alta do pensamento; a multidão dos órgãos agita-se e sofre para si; mas a soma não é de todo feita. Toda a dor quer ser contemplada, ou então não é em nada sentida. O que é um mal de um milésimo de segundo e imediatamente esquecido? A dor, como a dor de dentes, supõe que se preveja, que se espere, que se estenda algum tempo à frente ou atrás do presente; só o presente, é como nulo. Receamos mais do que aquilo que sofremos.

Estas observações, que são o tema de toda a consolação verdadeira, se fundam sobre uma exacta análise da própria consciência. Mas a imaginação fala alto; o seu jogo é compor o horror. Era preciso alguma experiência. Todavia a experiência não falta completamente. Aconteceu-me um dia, no teatro,  ser levado dez metros para lá do meu lugar por um curto pânico; só foi preciso um cheiro a queimado e algum movimento de fuga, logo imitado.  Ora, o que há de mais horrível que ser apanhado numa torrente humana e  ser arrastado não se sabe para o quê, nem porquê? Mas eu não soube de nada, nem no momento mesmo, nem por reflexão. Simplesmente, fui deslocado; e como não tinha que deliberar, não houve qualquer pensamento. A previsão, a recordação, tudo faltou à vez; assim não houve percepção nem sequer sentimento, mas antes um sono de alguns segundos.

Na noite em que parti para a guerra, nesse triste vagão cheio de boatos, de contos apaixonados e de loucas imagens, era assaltado por pensamentos pouco agradáveis.  Estavam lá alguns fugitivos de Charleroi que tinham tido o vagar de ter medo. Para cúmulo, encontrava-se num canto uma espécie de morto muito branco, com a cabeça enfaixada. Essa visão dava realidade aos terríveis quadros de batalha. “Eles vinham sobre nós, dizia o narrador, como formigas, o nosso fogo não deteve nada.” As imaginações estavam derrotadas. Felizmente o morto falou, e contou-nos como tinha sido morto na Alsácia, dum estilhaço atrás da orelha; mal já não imaginário, mas verdadeiro. “ Nós corríamos, disse, a coberto duma mata. Eu desemboco; mas a partir daí já não sei o que dizer; é como se o ar livre me tivesse  adormecido de repente, e eu acordei numa cama de hospital, onde me disseram que me tinham tirado da cabeça um estilhaço grande como o dedo polegar.” Assim fui reconduzido dos males imaginários aos males reais por este outro Er escapado dos infernos; e suspeitei que os maiores males são de pensar mal. O que não me curou completamente de imaginar o choque brutal e o estrépito dos ossos quebrados na minha cabeça. Mas já é qualquer coisa saber que nunca se imaginam os males como eles são.           
                                                           
        Alain
(Tradução de José Ames)                                                          
22 de Agosto de 1923

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