terça-feira, 31 de janeiro de 2012

SOBRE A MORTE

xv


A morte de um homem de estado é uma ocasião para meditar; e vêem-se por todo o lado teólogos dum momento. Cada um volta-se para si próprio e para a comum condição; mas este pensamento não tem objecto; só nos podemos pensar enquanto vivos. Donde uma impaciência. Diante desta ameaça abstracta e de todo informe, não sabemos o que fazer. Descartes dizia que a irresolução é o pior dos males. Pois bem, eis-nos para aí lançados, e sem nenhum remédio. Os que se vão enforcar estão melhor colocados; escolhem o prego e a corda; tudo depende deles até ao último salto. E, como o gotoso está ocupado em colocar bem a sua perna, assim cada estado, por muito mau que seja, reclama algum cuidado real e alguma tentativa. Mas o estado dum homem com saúde que pensa na morte é quase ridículo, por este risco indeterminado. Esta curta agitação completamente sem regra, e que em breve seria sem medida, é a paixão nua. O jogo de cartas, à falta de melhor,  oferece felizmente ao activo pensador problemas bem definidos, apostas a fazer, e prazos próximos.

O homem é corajoso; não na ocasião, mas essencialmente. Agir, é ousar. Pensar, é ousar. O risco está em todo o lado; isso não amedronta o homem. Vede-lo procurar a morte e desafiá-la; mas ele não sabe esperar. Todos os que estão desocupados são por de mais guerreiros pela impaciência. Não é que eles queiram morrer, mas é antes que eles querem viver. E a verdadeira causa da guerra é certamente o aborrecimento dum pequeno número, que gostaria de riscos bem claros, e procurados mesmo e definidos como nas cartas. E não é por acaso que aqueles que trabalham com as suas mãos são pacíficos; é também porque eles são vitoriosos de momento a momento. A sua própria experiência é plena e afirmativa. Não param de vencer a morte, e tal é a verdadeira maneira de pensar nela. O que ocupa o soldado, não é esta condição abstracta de estar sujeito à morte, mas tal perigo e depois outro. Podia muito bem ser que a guerra fosse o único remédio para a teologia dialéctica. Todos estes comedores de sombras acabam sempre por nos conduzir à guerra, porque não há no mundo nada além do perigo real que nos cure do medo.

Vede até um doente, como fica logo curado, pela doença, do medo de ficar doente. É sempre o imaginário que é o nosso inimigo. Porque não vemos nada aí que agarrar. Que fazer contra suposições? Acontece que um homem se encontra arruinado; imediatamente ele vê mais duma coisa para fazer, e premente; assim reencontra a sua vida intacta. Mas um homem que receia ficar arruinado e miserável, só porque imagina a revolução, as surpresas do câmbio, a queda do seu papel, que pode fazer? Que pode ele querer? Qualquer que seja a ideia que lhe venha é logo negada pela ideia contrária, porque os possíveis não têm limites; assim os males renascem sempre, sem nenhum progresso. Todas as suas acções são começos que se entrecortam e  enlaçam. Creio que não há outra coisa no medo senão uma agitação sem resultado, e que a meditação aumenta sempre o medo. Os homens temem a morte quando pensam nela; creio bem que sim; mas o que é que eles não temem, quando pensam sem fazer? O que é que não receiam quando o pensamento se perde em simples possibilidades? Pode-se ter uma cólica só por pensar num exame. Não podíamos pensar, face a este movimento das entranhas, que algum ferro as ameaça? Mas não. É a irresolução, pela ausência de objecto, que lhes ateia o fogo no ventre.

Alain
(Tradução de José Ames)

20 de Agosto de 1923

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