quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

ARGAN

X


Causas muito pequenas podem estragar um belo dia, por exemplo um sapato que magoa. Nada pode agradar então, e o juízo estupidifica. O remédio é simples; toda esta miséria se despe como um vestido. Sabemo-lo bem;  e estes males tornam-se ligeiros, mesmo no presente, pelo conhecimento das causas. O bebé que sente a ponta dum alfinete grita como se estivesse doente no mais íntimo; é porque não tem ideia da causa nem do remédio. E algumas vezes faz mal a si próprio à força de chorar, e chora ainda com mais força. Eis o que devemos chamar um mal imaginário;  porque os males imaginários são tão reais como os outros; são somente imaginários nisto que os entretemos com os nossos movimentos, ao mesmo tempo que acusamos as coisas exteriores. Não só os bebés se irritam de gritar.

Diz-se muitas vezes que o mau humor é uma doença e que nada se pode fazer. É por isso que eu lembro  em primeiro lugar os exemplos de sofrimento e irritação que um movimento muito simples pode imediatamente suprimir. Sabe-se que uma cãibra na barriga da perna faz gritar o homem mais firme; mas apoiai o pé espalmado no chão, e estais curados num instante. Para um mosquito ou um cisco no olho, se esfregais é um aborrecimento de duas ou três horas; mas mantende apenas as duas mãos imóveis e olhai a ponta do vosso nariz; de imediato a corrente das lágrimas vos liberta; e, desde que aprendi este remédio tão simples, já fiz a experiência mais de vinte vezes.  Prova de que é sensato não acusar logo os seres e as coisas à nossa volta, e de atentar primeiro em nós mesmos. Cremos observar algumas vezes nos outros uma certa predilecção pela infelicidade, e isso vê-se aumentado num certo género de loucos. Donde bem se poderia inventar algum sentimento místico ao mesmo tempo e diabólico. É deixar-se enganar pela imaginação; não há tanta profundeza num homem que se coça, e de modo nenhum um apetite de dor, mas mais uma agitação e irritação que se entretêm por si, pela ignorância das causas. O medo que se tem de cair do cavalo resulta de movimentos canhestros e tumultuosos pelos quais cremos evitar a queda; e o pior é que estes movimentos fazem medo ao cavalo. Donde eu concluiria, à maneira cita,  que quando um homem sabe montar a cavalo, já tem toda a sabedoria ou quase. Há mesmo uma arte de cair, espantosa no bêbedo, porque ele não pensa nada em cair bem, admirável no bombeiro, porque aprendeu pela ginástica a cair sem receio.

Um sorriso parece-nos pouca coisa e sem efeito sobre o humor; por isso nunca o experimentamos. Mas a cortesia muitas vezes, arrancando-nos um sorriso e a graça duma saudação, muda-nos completamente. O fisiologista sabe bem a razão; porque o sorriso desce tão fundo como o bocejo, e, de próximo em próximo, desata a garganta, os pulmões e o coração. O médico não encontraria, na sua caixa de remédios, o quer que agisse tão prontamente, tão harmoniosamente. A imaginação aqui alivia-nos a pena dum modo tão real como os males que ela causa. De resto aquele que quer fazer  de despreocupado sabe bem levantar os ombros, o que, bem vistas as coisas, areja os pulmões e acalma o coração, em todos os sentidos da palavra. Porque esta palavra tem vários sentidos, mas só há um coração.


11de Setembro de 1923



Alain
(Tradução de José Ames)

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