quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

MARIA TRISTE

III



Não é inútil reflectir sobre as loucuras circulares, e nomeadamente sobre esta “Maria triste e Maria alegre” que um dos nossos professores de psicologia felizmente encontrou na sua clínica. A história, já por de mais esquecida, devia ser conservada. Esta rapariga andava alegre uma semana, e triste a outra, com a regularidade dum relógio. Quando estava alegre, tudo andava bem; gostava da chuva como do sol; as menores marcas de amizade punham-na em êxtase; se pensava nalgum amor, dizia: “Que grande sorte para mim!” Nunca se aborrecia; os seus menores pensamentos tinham uma cor de regozijo, como belas e sãs flores que agradam todas. Andava no estado que eu vos desejo, meus amigos. Porque, como diz o sábio, toda a bilha tem duas pegas, e da mesma maneira todo o acontecimento tem dois aspectos, sempre acabrunhante se se quiser, sempre reconfortante e consolador se se quiser; e o esforço que se faz para ser feliz nunca é em vão.

Mas após uma semana tudo mudava de tom. Ela caía num langor desesperado; nada a interessava; o seu olhar murchava todas as coisas. Já não acreditava na felicidade; não acreditava mais na afeição. Nunca ninguém tinha gostado dela; e as pessoas tinham razão; julgava-se tola e aborrecida; agravava o mal pensando nele; e sabia-o; matava-se aos bocados, com uma espécie de método horrível. Dizia: “Vocês querem-me fazer acreditar que se interessam por mim; mas eu não me deixo enganar pela vossa comédia.” Um cumprimento era por troça, um favor, para a humilhar. Um segredo, era uma feia intriga. Estes males da imaginação não têm remédio, no sentido em que os melhores acontecimentos sorriem em vão ao homem infeliz. E há mais vontade do que se crê na felicidade.

Mas o professor de psicologia ia descobrir uma lição mais rude ainda, uma mais temível prova para a alma corajosa. Dentre um grande número de observações e de medidas à volta destas curtas estações humanas, veio a contar os glóbulos de sangue por centímetro cúbico. E a lei foi manifesta. Para o fim dum período de alegria, os glóbulos rarefaziam-se; para o fim dum período de tristeza, recomeçavam a esfuziar. Pobreza e riqueza do sangue, tal era a causa de toda esta fantasmagoria de imaginação. Assim o médico estava em condições de responder aos seus discursos apaixonados: “Console-se; amanhã você será feliz.” Mas ela não queria acreditar.

Um amigo, que se cria triste no fundo, dizia-me a propósito disso: “ O que há de mais claro? Nós não podemos fazer nada. Eu não posso dar a mim mesmo os glóbulos vermelhos através da reflexão. Assim toda a filosofia é vã. Este grande universo traz-nos a alegria ou a tristeza segundo as suas leis, como o Inverno e o Verão, como a chuva e o sol. O meu desejo de ser feliz não conta mais do que o meu desejo de passear; não faço a chuva sobre este vale; não faço a melancolia em mim; sofro-a e sei que a sofro; grande consolação!”
Não é tão simples. É claro que ruminando juízos severos, predições sinistras, negras recordações, nos confrontamos com a nossa própria tristeza; de alguma maneira a saboreamos. Mas se eu sei bem que há glóbulos vermelhos no caso, rio dos meus raciocínios; expulso a tristeza para o corpo, onde ela não é mais do que fadiga ou doença, sem qualquer ornamento. Suporta-se melhor uma dor de estômago do que uma traição. E não é melhor dizer que faltam glóbulos vermelhos, do que faltam os amigos verdadeiros? O apaixonado rejeita ao mesmo tempo as razões e o brometo. Não é notável que por este método que eu digo se abra a porta aos dois remédios?
                                                           18de Agosto de 1913
Alain
(Tradução de José Ames)

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