sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

NA GRANDE PRADARIA

XXXI


Platão tem contos de ama, que se parecem enfim com todos os contos de ama, mas que por certas palavras lançadas de passagem, ressoam no fundo de nós mesmos, e esclarecem subitamente recantos mal conhecidos. Tal é o conto dum certo Er, que foi tido como morto depois duma batalha, depois veio dos Infernos quando o erro foi reconhecido, e contou o que tinha visto lá em baixo.

Eis qual era a prova mais temível. As almas, ou as sombras, ou como se quiser,  são conduzidas a uma grande pradaria, e lançam-lhes diante delas sacos com os destinos a escolher. Estas almas ainda têm a memória da sua vida passada; escolhem segundo os seus desejos e os seus arrependimentos. Os que desejaram dinheiro mais do que qualquer outra coisa escolhem um destino cheio de dinheiro. Os que tiveram muito procuram mais ainda. Os voluptuosos procuram sacos cheios de prazer; os ambiciosos procuram um destino de rei. Para acabar, cada um encontra aquilo de que precisa, e vão-se, com o seu novo destino ao ombro, beber a água do rio Letes, o que quer dizer o rio do Esquecimento, e partem de novo para a terra dos homens, a fim de viverem conforme a sua escolha.

Eis uma prova singular e uma estranha punição, que é no entanto mais temível do que parece. Porque se encontram  poucos homens que reflictam sobre as verdadeiras causas da felicidade e da infelicidade. Aqueles sobem até à fonte, isto é, até aos desejos tirânicos que derrotam a razão. Aqueloutros desconfiam das riquezas, porque nos tornam sensíveis às lisonjas e surdos aos desgraçados; desconfiam do poder, porque  torna injustos, mais ou menos, todos os que o possuem; desconfiam dos prazeres, porque obscurecem e extinguem enfim a luz da inteligência. Esses sábios vão pois virar prudentemente mais de um saco de bela aparência, sempre preocupados em não perderem o seu equilíbrio e de não arriscarem, num destino brilhante, o pouco de recto sentido que conquistaram e conservaram com tanto labor.  Esses levarão às costas algum destino obscuro que ninguém mais queria.

Mas os outros, que galoparam toda a sua vida atrás do desejo, regalando-se com o que lhes parecia bom, sem olhar além da gamela, esses que quereis que  escolham, senão mais cegueira ainda, mais mentira e injustiça ainda? E assim se castigam eles mesmos, mais duramente do que qualquer juiz os castigaria. Este milionário está agora na grande pradaria, talvez. E que vai ele escolher? Mas deixemos as metáforas; Platão está sempre mais perto de nós do que cremos. Não tenho nenhuma experiência duma nova vida que se seguiria à morte; é portanto dizer muito pouco dizer que não creio nisso; eu nem sequer posso pensar isso, de qualquer maneira que seja. Eu diria antes que a vida futura, em que somos punidos segundo a nossa própria escolha e mesmo segundo a nossa própria lei, é este futuro mesmo para que nós deslizamos sem parar, e onde cada um esvazia o saco que escolheu. E é verdade que não cessamos de beber do rio do Esquecimento, acusando os deuses e o destino. Aquele que escolheu a ambição não cria ter escolhido a baixa lisonja,  inveja, injustiça; mas estava no saco.


Alain
(Tradução de José Ames)

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