segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

A ALMA PROFÉTICA

XXIII


Um filósofo bastante obscuro quis chamar de alma profética um certo estado de passividade atenta, se se pode dizer, em que os nossos pensamentos cedem a todas as forças do mundo como as folhas do choupo. É a alma à escuta. Desdobrada, de algum modo oferecida aos golpes. Estado de sobressalto. Compreendo a Sibila, o seu tripé, as suas convulsões. Atenção a tudo, quer dizer, medo de tudo. Lastimo aqueles que não sabem anular todo este ruído e este movimento do grande universo.

Algumas vezes o artista  gostaria de recair neste estado e dar audiência a tudo, a todas as cores, a todos os sons, a todo o calor, a todo o frio; espanta-se então que o camponês ou o marinheiro, tão profundamente mergulhados nas coisas naturais e tão dependentes pelo seu estado, não notem estas nuanças. Há um belo movimento de ombros que se descarrega destas coisas; é o gesto real. São Cristóvão atravessou a água sem contar as vagas. “não se dorme, quando se tem tanto espírito”; não se agiria também.

É preciso varrer, simplificar, suprimir. O que é próprio do homem, me parece, é ter rejeitado para o sono todas as espécies de meio-sono. Um sinal de boa saúde, é não se poder aguentar na fantasia, e de passar imediatamente ao sono. E despertar, é rejeitar o sono; em vez do que a alma profética acorda por metade e refaz os seus sonhos.

Pode-se viver assim; nada o impede. Somos admiravelmente feitos para pressentir; se se tem em conta esta fábrica do corpo vivo, compreende-se que os mais pequenos sinais entram em nós e ficam gravados. Um certo som do vento anuncia de longe a tempestade; e decerto é bom estar atento aos sinais; mas é preciso, no entanto,  não nos sobressaltarmos à menor mudança. Vi um barómetro registador de grande tamanho, e de tal modo sensível, que uma carroça na vizinhança, ou somente os passos dum homem fazia saltar a agulha. Assim seríamos nós, se deixássemos: e à medida que sol roda, o nosso humor mudaria; mas o rei do planeta não dá audiência a todas estas coisas.

Um homem tímido, em sociedade, quer tudo ouvir, tudo recolher, tudo interpretar. E para si a conversação é tão tola e incoerente como se todos dissessem o que lhes vem à cabeça. Mas o sábio talha os sinais e os discursos, como um bom jardineiro. Ainda melhor no mundo; porque todas as coisas nos tocariam e nos deteriam; o horizonte estaria em cima dos nossos olhos como um muro; mas nós reenviamos as coisas ao seu lugar; todo o pensamento é um massacre de impressões.

Desbravamento. Conheci uma mulher sensível que sofria ao ver  cortar um tronco ou um ramo. Mas, sem o lenhador, veríamos depressa voltar o mato, as serpentes, o pântano, as febres, a fome. Da mesma maneira é preciso que cada um desbrave o seu humor. Negar o seu próprio humor, é a própria incredulidade. Este mundo está aberto ao podão e ao machado; são avenidas a expensas dos sonhos; é como um desafio aos presságios. Ao passo que, quando se é indulgente consigo mesmo e adorador de impressões, o mundo se fecha sobre nós; ele anuncia-se pela sua presença. Cassandra anuncia os males. Desconfiai das Cassandras, almas deitadas. O verdadeiro homem sacode-se e faz o futuro.


Alain
(Tradução de José Ames)

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