terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

O NOSSO FUTURO

XXIV


Enquanto não se tiver compreendido bem a ligação de todas as coisas e o encadeamento das causas e dos efeitos, é-se esmagado pelo futuro. Um sonho ou a palavra dum feiticeiro matam as nossas esperanças; o presságio está em todas as avenidas. Ideia teológica. Toda a gente conhece a fábula desse poeta a quem foi predito que morreria da queda duma casa; ele passou a morar sob as estrelas, Mas os deuses não quiseram desistir, e uma águia deixou cair uma tartaruga sobre a sua cabeça calva, tomando-a por uma pedra. Conta-se também a história do filho dum rei que, segundo o oráculo, devia ser morto por um leão; foi guardado em casa com as mulheres; mas ele zangou-se contra uma tapeçaria que representava um leão, esfolou o punho num prego estragado, e morreu de gangrena.

A ideia que sai destes contos, é a predestinação que alguns teólogos puserem mais tarde em doutrina; e isso exprime-se assim: o destino de cada um está fixado, faça ele o que fizer. O que não é nada científico; porque este fatalismo é o mesmo que dizer: “Quaisquer que sejam as causas, o mesmo efeito será o resultado delas.” Ora, nós sabemos que se a causa é outra, o efeito será outro.  E destruímos este fantasma dum futuro inevitável com o seguinte raciocínio: suponhamos que eu saiba que vou ser esmagado por tal parede a tal hora de tal dia; este conhecimento fará justamente falhar a predição. É assim que nós vivemos; a cada instante escapamos a um mal porque o prevemos; assim, aquilo que prevemos, e muito razoavelmente, não acontece. Este automóvel vai-me esmagar se eu ficar no meio da estrada; mas eu não fico.

Donde vem então esta crença no destino? De duas fontes principalmente. Primeiro, o medo lança-nos muitas vezes no mal que nós esperamos. Se me predisseram que serei esmagado por um automóvel, e se a ideia me vem no mau momento, é o bastante para que eu não aja como era preciso; porque a ideia que me é útil nesse momento, é a ideia de que me vou salvar, donde a acção segue imediatamente; pelo contrário,  a ideia de que vou ficar paralisa-me pelo mesmo mecanismo. É uma espécie de vertigem que fez a fortuna dos feiticeiros.

É preciso dizer também que as nossas paixões e os nossos vícios têm realmente esse poder de ir ao mesmo fim por todos os caminhos. Pode-se predizer a um jogador que jogará, a um avarento que amontoará, a um ambicioso que cobiçará. Mesmo sem feiticeiro, deitamos a nós mesmos uma espécie de mau olhado, dizendo: “Eu sou assim; não posso fazer nada.” É ainda uma vertigem, e que faz verificarem-se as predições. Se se conhecesse bem a mudança contínua à nossa volta, a variedade e o florescimento contínuo das pequenas causas, seria o bastante para não nos fazermos um destino.

Lede o Gil-Blas; é um livro sem gravidade, onde se aprende que não se deve contar nem com a boa sorte nem com a má, mas deitar o lastro e  deixar-se levar pelo vento. As nossas faltas morrem antes de nós; não as guardemos como múmias.


Alain
(Tradução de José Ames)

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