quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

CARACTERES

XXI


Cada um tem o humor segundo o vento e segundo o estômago. Um dá um pontapé na porta, o outro fustiga o ar com palavras que não têm mais sentido do que os pontapés. A grandeza de alma deixa cair estes incidentes no esquecimento; que os sofra dos outros ou de si, ela perdoa-os perfeitamente porque nunca pensa nisso. Mas o que é comum, é consagrar o humor e de alguma maneira jurar por ele; é assim que se faz um carácter; e por termos tido humor contra alguém em certo dia, acabamos por amá-lo menos. Perdoar a si mesmo, nesse sentido, é mais raro do que era preciso; e é muitas vezes a primeira condição, se se quer perdoar aos outros. Pelo contrário, uma espécie de remorso sem medida é muitas vezes o que aumenta a falta do outro. Assim cada um passeia o seu humor pensado, dizendo: “Eu sou assim.” É sempre dizer mais do que se sabe.

Acontece que se suporta mal os perfumes; esse humor contra os ramos de flores e a água de Colónia não é nada constante. Mas procurar e cheirar o mais pequeno perfume e jurar que se vai ter uma dor de cabeça, é o que se vê. Jura-se de tudo, como tossir por causa do fumo. Cada um já conheceu destes tiranos domésticos. Aquele que sofre de insónia jura não dormir. E se decreta que o menor ruído o desperta, ei-lo a espiar todos os ruídos e a acusar toda a casa.  Chega ao ponto de se irritar por ter dormido, como uma falta por ter deixado de vigiar o seu próprio carácter. Enfatuamo-nos de tudo, e até de perder às cartas, como já vi.

Há pessoas que se põem a acreditar que já não têm memória, ou então que já não encontram as palavras. Aqui a prova não se faz esperar, e esta comédia de boa fé algumas vezes redunda em tragédia. Não se podem negar as doenças reais e os efeitos da idade; mas os médicos já há muito tempo que notaram este temível espírito de sistema que leva o doente a procurar os sintomas e a facilmente os encontrar. Esta amplificação é quase tudo das paixões e duma boa parte das doenças, sobretudo mentais. Charcot acabou por não acreditar em nada do que os doentes diziam deles próprios; e pode-se dizer que certas doenças desapareceram ou quase pela incredulidade dos médicos.

O engenhoso sistema de Freud, um momento célebre, perde já o seu crédito por isto, que é demasiado fácil  fazer crer tudo o que se quiser a um espírito inquieto e que, como diz Stendhal,   tem já a sua imaginação como inimiga. Sem contar que as coisas do sexo, que são o fundo deste sistema, são justamente daquelas que contam pela importância que se lhes dá e por uma espécie de poesia selvagem, como cada um bem sabe. E os pensamentos do médico nunca são bons para o doente; toda a gente o sabe. O que  se sabe menos, é que o doente prontamente adivinha este pensamento estrangeiro e o faz seu, o que verifica logo as hipótese mais brilhantes. Foi assim que se descreveram espantosas doenças da memória, em que as recordações duma certa espécie se perdiam em conjunto sistematicamente. Tinha-se esquecido que o espírito de sistema está também no doente.


Alain
(Tradução de José Ames)

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