XXI
Cada um tem o humor segundo o vento e segundo o estômago.
Um dá um pontapé na porta, o outro fustiga o ar com palavras que não têm mais
sentido do que os pontapés. A grandeza de alma deixa cair estes incidentes no
esquecimento; que os sofra dos outros ou de si, ela perdoa-os perfeitamente
porque nunca pensa nisso. Mas o que é comum, é consagrar o humor e de alguma
maneira jurar por ele; é assim que se faz um carácter; e por termos tido humor
contra alguém em certo dia, acabamos por amá-lo menos. Perdoar a si mesmo,
nesse sentido, é mais raro do que era preciso; e é muitas vezes a primeira
condição, se se quer perdoar aos outros. Pelo contrário, uma espécie de remorso
sem medida é muitas vezes o que aumenta a falta do outro. Assim cada um passeia
o seu humor pensado, dizendo: “Eu sou assim.” É sempre dizer mais do que se
sabe.
Acontece que se suporta mal os perfumes; esse humor contra
os ramos de flores e a água de Colónia não é nada constante. Mas procurar e
cheirar o mais pequeno perfume e jurar que se vai ter uma dor de cabeça, é o
que se vê. Jura-se de tudo, como tossir por causa do fumo. Cada um já conheceu
destes tiranos domésticos. Aquele que sofre de insónia jura não dormir. E se
decreta que o menor ruído o desperta, ei-lo a espiar todos os ruídos e a acusar
toda a casa. Chega ao ponto de se
irritar por ter dormido, como uma falta por ter deixado de vigiar o seu próprio
carácter. Enfatuamo-nos de tudo, e até de perder às cartas, como já vi.
Há pessoas que se põem a acreditar que já não têm memória,
ou então que já não encontram as palavras. Aqui a prova não se faz esperar, e
esta comédia de boa fé algumas vezes redunda em tragédia. Não se podem negar as
doenças reais e os efeitos da idade; mas os médicos já há muito tempo que
notaram este temível espírito de sistema que leva o doente a procurar os
sintomas e a facilmente os encontrar. Esta amplificação é quase tudo das paixões
e duma boa parte das doenças, sobretudo mentais. Charcot acabou por não
acreditar em nada do que os doentes diziam deles próprios; e pode-se dizer que
certas doenças desapareceram ou quase pela incredulidade dos médicos.
O engenhoso sistema de Freud, um momento célebre, perde já
o seu crédito por isto, que é demasiado fácil
fazer crer tudo o que se quiser a um espírito inquieto e que, como diz
Stendhal, tem já a sua imaginação como
inimiga. Sem contar que as coisas do sexo, que são o fundo deste sistema, são
justamente daquelas que contam pela importância que se lhes dá e por uma
espécie de poesia selvagem, como cada um bem sabe. E os pensamentos do médico
nunca são bons para o doente; toda a gente o sabe. O que se sabe menos, é que o doente prontamente
adivinha este pensamento estrangeiro e o faz seu, o que verifica logo as
hipótese mais brilhantes. Foi assim que se descreveram espantosas doenças da
memória, em que as recordações duma certa espécie se perdiam em conjunto
sistematicamente. Tinha-se esquecido que o espírito de sistema está também no
doente.
Alain
(Tradução de José Ames)
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