XVI
O mais comum dos homens é um grande artista quando mima os
seus males. Se tem o coração apertado, como tão bem se diz, vede-lo estrangular
ainda o peito com os braços, e comprimir
todos os músculos uns contra os outros.
Na ausência de qualquer inimigo, ele cerra os dentes, arma o peito e mostra o
punho ao céu. E sabei que, mesmo se estes gestos perturbadores não se produzem
no exterior, não são menos esboçados no interior do corpo imóvel, donde
resultam mais poderosos efeitos ainda. Espantamo-nos às vezes, quando não
conseguimos dormir, por os mesmos pensamentos, quase sempre desagradáveis,
andarem à volta; é de apostar que seja a
mímica esboçada que os chama. Contra todos os males de ordem moral, e
igualmente para as doenças no seu começo, é preciso flexibilidade e ginástica;
e creio que quase sempre este remédio bastaria; mas não se pensa nisso.
Os costumes de cortesia são bem poderosos sobre os nossos
pensamentos; e não é um pequeno socorro contra o humor e mesmo contra a dor de
estômago se se mimar a doçura, a benevolência e a alegria; estes movimentos,
que são as vénias e os sorrisos, têm de bom impossibilitarem os movimentos
opostos, de furor, de desconfiança, de tristeza. Eis por que a vida de
sociedade, as visitas, as cerimónias e as festas são sempre amadas; é uma
ocasião de mimar a felicidade; e este género de comédia liberta-nos certamente
da tragédia; não é pouco.
A atitude religiosa é útil de ser considerada pelo médico;
porque este corpo ajoelhado, encolhido e solto liberta os órgãos, e torna as
funções vitais mais fáceis. “Baixa a cabeça, orgulhoso Sicambro”; não lhe é pedido que se cure da cólera e do
orgulho mas primeiro para se calar, repousar os olhos, e se dispor segundo a
doçura; por este meio todo a violência do carácter é apagada; não passado muito
tempo, nem para sempre, porque isso ultrapassa o nosso poder, mas logo e por um
momento. Os milagres da religião não são milagres.
É belo de ver como um homem expulsa uma ideia importuna;
vede-lo encolher os ombros e sacudir o peito, como se desembaraçasse os
músculos; vede-lo virar a cabeça, para ter outras percepções e outras
fantasias; lançar para longe as
preocupações num gesto livre, e fazer estalar os dedos, o que é o começo
duma dança. Se a harpa de David o toma nesse momento, regulando e temperando
esses gestos a fim de afastar todo o furor e toda a impaciência, o melancólico
acha-se imediatamente curado.
Gosto do gesto da perplexidade; o homem coça o cabelo
atrás da orelha; ora, esta astúcia tem por efeito desviar e divertir um dos
gestos mais temíveis, o que vai lançar a pedra ou o dardo. Aqui a mímica que
liberta está muito próxima do gesto que arrebata. O rosário é uma invenção
admirável que ocupa o pensamento e os dedos ao mesmo tempo a contar. Mas o
segredo do sábio é ainda mais belo, segundo o qual a vontade nada pode sobre as
paixões, mas pode dirigir os movimentos. É mais fácil pegar num violino e
tocar, do que procurar uma razão.
Alain
(Tradução de José Ames)
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