quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

A FORÇA DO ESQUECIMENTO

XXX


Esse método de polícia, que consiste em curar um bêbedo pelo juramento, traz a marca da acção; um teórico não se teria fiado nisso; porque, aos seus olhos,  os hábitos e os vícios estão solidamente definidos e estabelecidos. Reflectindo segundo as ciências das coisas, ele pretende que todo o homem transporta consigo as suas maneiras de agir, como propriedades, a exemplo do ferro e do enxofre. Mas eu creio antes que as virtudes e os vícios, muitas vezes, não têm mais a ver com a nossa natureza do que o facto de ser martelado ou laminado tem a ver com a natureza do ferro, ou com a natureza do enxofre   estar em pólvora ou em canhões.

No caso do bêbedo vejo bem a razão disso; é o hábito aqui que faz a necessidade; porque beber o que ele bebe dá sede e retira a razão. Mas a primeira causa de beber é bem fraca; um juramento pode anulá-la; e a partir deste pequeno esforço de pensamento, eis o nosso homem tão sóbrio como se só tivesse bebido água desde há vinte anos. O contrário também se vê; eu sou sóbrio, mas tornar-me-ia logo bêbedo e sem esforço. Já gostei do jogo; tendo mudado as circunstâncias, nunca mais pensei nisso; se me aplicasse, gostaria ainda. Há obstinação nas paixões e talvez sobretudo um erro desmedido; nós cremo-nos apanhados, Aqueles que não gostam de queijo não o querem provar, porque crêem que não vão gostar. Muitas vezes um celibatário crê que o casamento lhe seria insuportável. Um desespero traz consigo infelizmente uma certeza, digamos uma forte afirmação, que leva a que se repudie o abrandamento. Esta ilusão, porque creio que é uma, é muito natural; julgamos mal do que não se tem. Enquanto eu beber, não posso conceber a sobriedade; repudio-a pelos meus actos.  A partir do momento em que não beba, repudio só por isso a bebedice. É o mesmo quanto à tristeza, o jogo, tudo.

Ao aproximar-se uma mudança de casa dizeis adeus às paredes que ides deixar; o  mobiliário ainda não está na rua e já amais o outro alojamento; o velho alojamento é esquecido. Tudo é depressa esquecido; o presente tem a sua força e a sua juventude, sempre; e acomodamo-nos com um movimento seguro. Cada um já experimentou isso e ninguém acredita. O hábito é uma espécie de ídolo, que tem poder pela nossa obediência; e é o pensamento aqui que nos engana; porque o que nos é impossível de pensar parece-nos impossível de fazer. A imaginação conduz o mundo dos homens, por isto que ela não pode libertar-se do costume; e seria preciso dizer que a imaginação não sabe inventar; mas é a acção que inventa.

O meu avô, pelos seus setenta anos, enjoou os alimentos sólidos, e viveu de leite durante cinco anos pelo menos. Dizia-se que era mania; dizia-se bem. Vi-o um dia num jantar de família atacar subitamente uma coxa de frango; e viveu ainda seis ou sete anos, comendo como vós e eu. Acto de coragem, decerto, mas que afrontava ele? A opinião, ou melhor a opinião que ele tinha da opinião, ou melhor a opinião que tinha de si próprio. Feliz natureza, dir-se-á. Mas não. Todos são assim, só que não o sabem; e cada um segue a sua personagem.


Alain
(Tradução de José Ames)

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