XXX
Esse método de polícia, que consiste em curar um bêbedo
pelo juramento, traz a marca da acção; um teórico não se teria fiado nisso;
porque, aos seus olhos, os hábitos e os
vícios estão solidamente definidos e estabelecidos. Reflectindo segundo as
ciências das coisas, ele pretende que todo o homem transporta consigo as suas
maneiras de agir, como propriedades, a exemplo do ferro e do enxofre. Mas eu
creio antes que as virtudes e os vícios, muitas vezes, não têm mais a ver com a
nossa natureza do que o facto de ser martelado ou laminado tem a ver com a
natureza do ferro, ou com a natureza do enxofre estar em pólvora ou em canhões.
No caso do bêbedo vejo bem a razão disso; é o hábito aqui
que faz a necessidade; porque beber o que ele bebe dá sede e retira a razão.
Mas a primeira causa de beber é bem fraca; um juramento pode anulá-la; e a
partir deste pequeno esforço de pensamento, eis o nosso homem tão sóbrio como
se só tivesse bebido água desde há vinte anos. O contrário também se vê; eu sou
sóbrio, mas tornar-me-ia logo bêbedo e sem esforço. Já gostei do jogo; tendo
mudado as circunstâncias, nunca mais pensei nisso; se me aplicasse, gostaria
ainda. Há obstinação nas paixões e talvez sobretudo um erro desmedido; nós
cremo-nos apanhados, Aqueles que não gostam de queijo não o querem provar,
porque crêem que não vão gostar. Muitas vezes um celibatário crê que o
casamento lhe seria insuportável. Um desespero traz consigo infelizmente uma
certeza, digamos uma forte afirmação, que leva a que se repudie o abrandamento.
Esta ilusão, porque creio que é uma, é muito natural; julgamos mal do que não
se tem. Enquanto eu beber, não posso conceber a sobriedade; repudio-a pelos
meus actos. A partir do momento em que
não beba, repudio só por isso a bebedice. É o mesmo quanto à tristeza, o jogo,
tudo.
Ao aproximar-se uma mudança de casa dizeis adeus às
paredes que ides deixar; o mobiliário
ainda não está na rua e já amais o outro alojamento; o velho alojamento é
esquecido. Tudo é depressa esquecido; o presente tem a sua força e a sua juventude,
sempre; e acomodamo-nos com um movimento seguro. Cada um já experimentou isso e
ninguém acredita. O hábito é uma espécie de ídolo, que tem poder pela nossa
obediência; e é o pensamento aqui que nos engana; porque o que nos é impossível
de pensar parece-nos impossível de fazer. A imaginação conduz o mundo dos
homens, por isto que ela não pode libertar-se do costume; e seria preciso dizer
que a imaginação não sabe inventar; mas é a acção que inventa.
O meu avô, pelos seus setenta anos, enjoou os alimentos
sólidos, e viveu de leite durante cinco anos pelo menos. Dizia-se que era
mania; dizia-se bem. Vi-o um dia num jantar de família atacar subitamente uma
coxa de frango; e viveu ainda seis ou sete anos, comendo como vós e eu. Acto de
coragem, decerto, mas que afrontava ele? A opinião, ou melhor a opinião que ele
tinha da opinião, ou melhor a opinião que tinha de si próprio. Feliz natureza,
dir-se-á. Mas não. Todos são assim, só que não o sabem; e cada um segue a sua
personagem.
Alain
(Tradução de José Ames)
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