quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

GINÁSTICAS

XVII


Como explicar que um pianista, que acredita morrer de medo ao entrar em cena, fique imediatamente curado logo que começa a tocar? Dir-se-á que ele já não pensa mais em ter medo, e é verdade; mas gosto de reflectir mais perto do medo, e de compreender que o artista sacode o medo e o desfaz por estes flexíveis movimentos dos dedos. Porque, como tudo está ligado na nossa máquina, os dedos não podem estar soltos se o peito também não o estiver; a flexibilidade, como a rigidez, invade tudo; e, neste corpo bem governado, o medo já não pode ser. O verdadeiro canto e a verdadeira eloquência não confortam menos, por este trabalho doseado que é então imposto a todos os músculos. Coisa notável e muito pouco notada, não é o pensamento que nos liberta das paixões, mas é antes a acção que nos liberta. Não se pensa conforme se quer; mas, quando as acções são suficientemente familiares, quando os músculos estão treinados e maleáveis pela ginástica, agimos como queremos. Nos momentos de ansiedade não procureis reflectir, porque a vossa razão se virará contra vós cheia de pontas; mas procurai antes  essas elevações e flexões dos braços que se aprendem agora em todas as escolas; o resultado vai surpreender-vos. Assim o mestre de filosofia vos reenvia para o mestre de ginástica.

Um aviador contou-me o grande medo que teve durante duas horas, quando estava deitado na relva à espera da aberta, e meditando sobre os perigos contra os quais nada podia. No ar e manobrando o instrumento familiar, ficou curado. Esta história vinha-me à memória quando estava a ler algumas das aventuras do ilustre Fonck. Um dia, encontrando-se a quatro mil metros acima do solo, num avião equipado com um canhão, apercebe-se que os comandos não obedecem e que está a cair. Procura a causa, apercebe-se por fim dum obus fora do sítio e que imobilizava tudo, repõe-no no lugar sempre a cair, e levanta o aparelho sem outro dano. Minutos desses são bem capazes, pela recordação ou em sonho, de amedrontar ainda hoje este homem corajoso; mas se  quiséssemos acreditar que ele teve medo no momento mesmo, creio que nos enganávamos. O nosso corpo é para nós difícil no sentido em que, desde que não receba ordens, ele toma o comando; mas em contrapartida, é feito tal que não pode estar disposto de duas maneiras ao mesmo tempo; é preciso que a mão esteja aberta ou fechada. Se abris a mão, deixais escapar todos os pensamentos irritantes que tínheis no punho fechado.  E se simplesmente encolheis os ombros, é preciso que voem as preocupações que encerráveis na caixa torácica. É do mesmo modo que não podeis engolir e tossir ao mesmo tempo, e é assim que eu explico a virtude das pastilhas. Semelhantemente, curar-vos-eis dos soluços se conseguirdes bocejar. Mas como bocejar? Conseguimo-lo muito facilmente imitando primeiro a coisa, por espreguiçamento e bocejos simulados; o animal escondido, o mesmo que vos dá os soluços sem a vossa permissão, ficará assim na posição do bocejo, e bocejará. Eficaz remédio contra os soluços, contra a tosse e contra as preocupações. Mas onde está o médico que receitará que se boceje todos os quartos de hora?


Alain
(Tradução de José Ames)

Sem comentários:

Enviar um comentário