XVII
Como explicar que um pianista, que acredita morrer de medo
ao entrar em cena, fique imediatamente curado logo que começa a tocar? Dir-se-á
que ele já não pensa mais em ter medo, e é verdade; mas gosto de reflectir mais
perto do medo, e de compreender que o artista sacode o medo e o desfaz por
estes flexíveis movimentos dos dedos. Porque, como tudo está ligado na nossa
máquina, os dedos não podem estar soltos se o peito também não o estiver; a
flexibilidade, como a rigidez, invade tudo; e, neste corpo bem governado, o
medo já não pode ser. O verdadeiro canto e a verdadeira eloquência não
confortam menos, por este trabalho doseado que é então imposto a todos os
músculos. Coisa notável e muito pouco notada, não é o pensamento que nos
liberta das paixões, mas é antes a acção que nos liberta. Não se pensa conforme
se quer; mas, quando as acções são suficientemente familiares, quando os
músculos estão treinados e maleáveis pela ginástica, agimos como queremos. Nos
momentos de ansiedade não procureis reflectir, porque a vossa razão se virará
contra vós cheia de pontas; mas procurai antes
essas elevações e flexões dos braços que se aprendem agora em todas as
escolas; o resultado vai surpreender-vos. Assim o mestre de filosofia vos
reenvia para o mestre de ginástica.
Um aviador contou-me o grande medo que teve durante duas
horas, quando estava deitado na relva à espera da aberta, e meditando sobre os
perigos contra os quais nada podia. No ar e manobrando o instrumento familiar,
ficou curado. Esta história vinha-me à memória quando estava a ler algumas das
aventuras do ilustre Fonck. Um dia, encontrando-se a quatro mil metros acima do
solo, num avião equipado com um canhão, apercebe-se que os comandos não
obedecem e que está a cair. Procura a causa, apercebe-se por fim dum obus fora
do sítio e que imobilizava tudo, repõe-no no lugar sempre a cair, e levanta o
aparelho sem outro dano. Minutos desses são bem capazes, pela recordação ou em
sonho, de amedrontar ainda hoje este homem corajoso; mas se quiséssemos acreditar que ele teve medo no
momento mesmo, creio que nos enganávamos. O nosso corpo é para nós difícil no
sentido em que, desde que não receba ordens, ele toma o comando; mas em
contrapartida, é feito tal que não pode estar disposto de duas maneiras ao
mesmo tempo; é preciso que a mão esteja aberta ou fechada. Se abris a mão,
deixais escapar todos os pensamentos irritantes que tínheis no punho fechado. E se simplesmente encolheis os ombros, é
preciso que voem as preocupações que encerráveis na caixa torácica. É do mesmo
modo que não podeis engolir e tossir ao mesmo tempo, e é assim que eu explico a
virtude das pastilhas. Semelhantemente, curar-vos-eis dos soluços se
conseguirdes bocejar. Mas como bocejar? Conseguimo-lo muito facilmente imitando
primeiro a coisa, por espreguiçamento e bocejos simulados; o animal escondido,
o mesmo que vos dá os soluços sem a vossa permissão, ficará assim na posição do
bocejo, e bocejará. Eficaz remédio contra os soluços, contra a tosse e contra
as preocupações. Mas onde está o médico que receitará que se boceje todos os
quartos de hora?
Alain
(Tradução de José Ames)
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