quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

DO DESTINO

XXIX


O Destino, dizia Voltaire, conduz-nos e troça de nós.” Esta frase espanta-me num homem destes que foi tão bem ele mesmo. O destino exterior age por meios violentos; é claro que a pedra ou o obus esmagará também um Descartes. Essas forças podem  apagar-nos todos da terra num momento. Mas o acontecimento, que mata tão facilmente um homem, não consegue mudá-lo. Admiro como os indivíduos vão ao seu fim, e como aproveitam tudo; como um cão, da galinha que come, faz carne de cão e gordura de cão, assim o indivíduo digere o acontecimento. Esta constância no querer, que é própria das naturezas fortes, acaba sempre por encontrar passagem, na mudança de todas as coisas, em que há de tudo. O próprio do homem forte é marcar todas as coisas com o seu selo. Mas esta força é mais comum do que se crê. Tudo é vestuário para o homem, e as dobras seguem a forma e o gesto. Uma mesa, um escritório, um quarto, uma casa são prontamente arranjadas ou desarranjadas conforme a mão. Os negócios continuam, grandes ou pequenos; e nós dizemos que são felizes ou infelizes segundo o juízo exterior; mas o homem que os conduz bem ou mal faz sempre o seu buraco segundo a sua forma, como o rato. Olhai bem: ele fez o que quis.

“O que a juventude deseja, tem a velhice em abundância.” É Goethe que cita este provérbio no começo das suas memórias. E Goethe é um brilhante exemplo dessas naturezas que afeiçoam todo o acontecimento segundo a sua própria fórmula. Nem todo o homem é Goethe, é verdade; mas todo o homem é ele próprio. A marca não é boa, seja; mas ele deixa-a em todo o lado. O que ele quer não é qualquer coisa de muito elevado; mas o que quer, ele tem-no. Este homem, que não é Goethe, também não o queria ser. Spinoza, que apreendeu melhor do que ninguém estas naturezas crocodilinas, invencíveis, diz que o homem não tem necessidade da perfeição do cavalo. Da mesma maneira, nenhum homem tem necessidade da perfeição de Goethe. Mas o comerciante, onde quer que esteja, e igualmente sobre ruínas, o comerciante vende e compra, o banqueiro empresta, o poeta canta, o preguiçoso dorme. Muitas pessoas queixam-se de não terem isto ou aquilo; mas a causa é sempre que elas não o desejaram verdadeiramente. Este coronel, que vai plantar as suas couves, bem quis ser general; mas se eu pudesse procurar na sua vida, aperceber-me-ia dalguma pequena coisa que era preciso fazer, e que ele não fez, que não quis fazer. Provar-lhe-ei que ele não queria ser general.

Vejo pessoas, que, com meios bastantes, apenas alcançaram um magro e pequeno posto. Mas que queriam elas? O seu falar aberto? Elas têm-no. Não lisonjear? Elas não lisonjearam nem lisonjeiam. Poder pelo juízo, pelo conselho, pela recusa? Podem. Não têm dinheiro? Mas não desprezaram sempre o dinheiro? O dinheiro vai para aqueles que lhe fazem honras. Encontrai-me um só homem que tenha querido enriquecer e que o não tenha podido. Digo que tenha querido. Esperar não é querer. O poeta espera cem mil francos; não sabe de quem nem como; não faz o mais pequeno movimento para estes cem mil francos;  também não os tem. Mas faz belos versos. Também os faz. Belos segundo a sua natureza, como o crocodilo faz  as suas escamas  e o pássaro as suas penas. Pode-se chamar também destino a esta força interior que acaba por encontrar passagem; mas só tem de comum o nome entre esta vida tão bem armada e composta, e essa telha do acaso que matou Pirro. Era o que me exprimia um sábio, dizendo que a predestinação de Calvino não se parecia nada mal com a própria liberdade.


Alain
(Tradução de José Ames)

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