XXVI
O homem não tem mais recursos do que a sua vontade; ideia
tão antiga como as religiões, os prodígios e as desgraças; em contrapartida,
ideia que, pela sua natureza, é vencida ao mesmo tempo que a própria vontade; porque a força de alma
se prova pelos efeitos. Hércules dava-se a si mesmo este género de prova até ao
dia em que se julgou escravo; preferiu então uma morte retumbante a uma vida
miserável. Este mito é o mais belo; gostaria que fizessem as crianças recitar
as obras de Hércules, a fim de que aprendessem a superar as forças exteriores;
porque isso mesmo é viver, e o outro partido, o partido poltrão, é apenas o
partido de morrer por muito tempo.
Gosto duma criança que reflecte ultrapassando, e que, na
volta mal feita, diz primeiro: “A culpa é minha”, e procura a sua própria falta
e soca cordialmente as costelas. Mas o que fazer do autómato com forma humana
que procura sempre uma desculpa nas coisas e nas pessoas à volta? Por aí não há
nenhuma alegria, porque é muito claro que as coisas e as pessoas à volta não
prestam atenção ao infeliz; por isso os seus pensamentos seguem o vento, como
as folhas nesta dura estação. Eu admiro isto, que aqueles que procuram
desculpas fora deles nunca estão contentes, enquanto que os que vão direitos à
sua própria falta e dizem: “ Fui bem tolo” se encontram fortes e felizes por
esta experiência que digeriram.
Há duas experiências, uma que sobrecarrega e outra que
alivia. Como há o caçador alegre e o caçador triste. O caçador triste falha a
lebre e diz: “Que sorte a minha”, e logo: “Isto só a mim é que acontece.” O
caçador alegre admira a astúcia da lebre, porque sabe bem que não está na vocação da lebre o correr
para a caçarola. Os provérbios estão cheios desta viril sabedoria e há muito de
profundo no que a minha avó dizia das cotovias, que hão caíam já assadas. Como
se faz a cama, assim nos deitamos. “Como
eu queria gostar da música”, diz o tolo; mas é preciso fazer a música; ela não
existe.
Tudo é contra nós; mas digamos melhor, tudo é indiferente
e sem respeito; a face da terra é mato e pestilência sem a obra do homem; não
inimiga, mas não favorável. Só a obra do homem é para o homem. Mas é a
esperança que faz o medo; eis por que é um mau começo se por acaso temos êxito;
e quem bendiz os deuses depressa os amaldiçoa. Como esses noivos que gostam do
presidente da câmara e do suíço da igreja; eles não viram com que ar o bedel
apagava as velas. Certo dia reparei no
sorriso duma vendedeira de perfumes; ela fechou-o tão completamente como
fecharia a sua porta; e é um belo espectáculo também ver um comerciante que põe
os taipais. Logo que a coisa
estrangeira, seja um homem, nos descobre a sua lei própria, segundo a qual
gravita, eis-nos no nosso trabalho de homem; mas quando um ser nos promete benevolência,
ficamos privados do conhecimento, e sem outro recurso se não esperar. Os seres
são bem mais belos e mais amigos por detrás dos seus taipais e na sua rica
existência do que nestes presságios e reflexos. Já notei que os homens
enérgicos gostam das diferenças e
variedades. A paz é entre as forças.
Alain
(Tradução de José Ames)
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