quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

HÉRCULES

XXVI


O homem não tem mais recursos do que a sua vontade; ideia tão antiga como as religiões, os prodígios e as desgraças; em contrapartida, ideia que, pela sua natureza, é vencida ao mesmo tempo  que a própria vontade; porque a força de alma se prova pelos efeitos. Hércules dava-se a si mesmo este género de prova até ao dia em que se julgou escravo; preferiu então uma morte retumbante a uma vida miserável. Este mito é o mais belo; gostaria que fizessem as crianças recitar as obras de Hércules, a fim de que aprendessem a superar as forças exteriores; porque isso mesmo é viver, e o outro partido, o partido poltrão, é apenas o partido de morrer por muito tempo.

Gosto duma criança que reflecte ultrapassando, e que, na volta mal feita, diz primeiro: “A culpa é minha”, e procura a sua própria falta e soca cordialmente as costelas. Mas o que fazer do autómato com forma humana que procura sempre uma desculpa nas coisas e nas pessoas à volta? Por aí não há nenhuma alegria, porque é muito claro que as coisas e as pessoas à volta não prestam atenção ao infeliz; por isso os seus pensamentos seguem o vento, como as folhas nesta dura estação. Eu admiro isto, que aqueles que procuram desculpas fora deles nunca estão contentes, enquanto que os que vão direitos à sua própria falta e dizem: “ Fui bem tolo” se encontram fortes e felizes por esta experiência que digeriram.

Há duas experiências, uma que sobrecarrega e outra que alivia. Como há o caçador alegre e o caçador triste. O caçador triste falha a lebre e diz: “Que sorte a minha”, e logo: “Isto só a mim é que acontece.” O caçador alegre admira a astúcia da lebre, porque sabe  bem que não está na vocação da lebre o correr para a caçarola. Os provérbios estão cheios desta viril sabedoria e há muito de profundo no que a minha avó dizia das cotovias, que hão caíam já assadas. Como se faz a  cama, assim nos deitamos. “Como eu queria gostar da música”, diz o tolo; mas é preciso fazer a música; ela não existe.

Tudo é contra nós; mas digamos melhor, tudo é indiferente e sem respeito; a face da terra é mato e pestilência sem a obra do homem; não inimiga, mas não favorável. Só a obra do homem é para o homem. Mas é a esperança que faz o medo; eis por que é um mau começo se por acaso temos êxito; e quem bendiz os deuses depressa os amaldiçoa. Como esses noivos que gostam do presidente da câmara e do suíço da igreja; eles não viram com que ar o bedel apagava as velas.  Certo dia reparei no sorriso duma vendedeira de perfumes; ela fechou-o tão completamente como fecharia a sua porta; e é um belo espectáculo também ver um comerciante que põe os  taipais. Logo que a coisa estrangeira, seja um homem, nos descobre a sua lei própria, segundo a qual gravita, eis-nos no nosso trabalho de homem; mas quando um ser nos promete benevolência, ficamos privados do conhecimento, e sem outro recurso se não esperar. Os seres são bem mais belos e mais amigos por detrás dos seus taipais e na sua rica existência do que nestes presságios e reflexos. Já notei que os homens enérgicos gostam das diferenças  e variedades. A paz é entre as forças.


Alain
(Tradução de José Ames)

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