terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

A ARTE DO BOCEJO

XIX


Um cão que boceja ao canto da lareira, eis o que adverte os caçadores que devem deixar as preocupações para o dia seguinte. Esta força da vida que se espreguiça sem maneiras e contra toda a cerimónia é bela de ver e irresistível no seu exemplo; é preciso que toda a companhia se espreguice e boceje, o que é o prelúdio de ir dormir; não que o bocejo seja sinal de fadiga; mas é antes despedir o espírito de atenção e de disputa, por esse profundo arejar do saco visceral. A natureza anuncia com esta enérgica reforma que se contenta de viver e que está cansada de pensar.

Toda a gente pode observar que a atenção e a surpresa cortam, como se diz, a respiração. A fisiologia retira daí toda a espécie de dúvida, mostrando como os poderosos músculos da defesa se agarram ao tórax, e só podem apertar e paralisar logo que são mobilizados. E note-se que o movimento de levantar os braços no ar, sinal de capitulação, é igualmente o mais útil para libertar o tórax; mas é também a melhor posição para bocejar energicamente. Compreendamos, a partir daqui, como qualquer preocupação nos aperta literalmente o coração, o esboço da acção apoiando-se logo no tórax, e começando a ansiedade, irmã da espera; porque nós ficamos ansiosos  só de esperar, mesmo quando é coisa pouca. A este estado penoso segue-se logo a impaciência, cólera contra si mesmo que não liberta nada. A cerimónia é feita de todas estas constrições, que o hábito agrava ainda, e o contágio, porque o aborrecimento pega-se. Mas também o bocejo é  o remédio contagioso da  contagiosa cerimónia. Perguntamo-nos como é que o bocejo se comunica como uma doença; eu creio que é antes a gravidade, a atenção e o ar de preocupação que se comunicam como uma doença; e o bocejar, pelo contrário, que é uma desforra da vida e como que uma retoma da saúde, comunica-se pelo abandono do sério e como uma enfática declaração de despreocupação; é um sinal que todos  aguardam, como o sinal de destroçar. Este bem-estar não pode ser recusado; todo o sério para aí se inclinava.

O riso e o soluço são soluções do mesmo género, mas mais contidas, mais contrariadas; mostra-se aí uma luta entre dois pensamentos, em que um encadeia e o outro liberta. Em vez disso, pelo bocejo, todos os pensamentos são postos em debandada, os que prendem e os que libertam; a facilidade de viver apaga-os a todos. Assim, é sempre o cão que boceja. Cada um já pôde observar que o bocejo é sempre um sinal favorável, neste género de doenças a que se chamam nervosas, e em que é o pensamento que faz a doença. Mas creio que o bocejo é salutar em todas, como o sono que ele anuncia; e é um sinal de que os nossos pensamentos são sempre doenças para muitos; coisa que espantaria menos se se pensasse no mal que nos podemos fazer mordendo a língua; e o sentido figurado desta expressão mostra bem que o arrependimento, bem chamado remorso, pode ir até à lesão. O bocejo, pelo contrário, não tem qualquer risco.


Alain
(Tradução de José Ames)

Sem comentários:

Enviar um comentário