sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

A FATALIDADE

XXII


Não sabemos começar nada, digo isso mesmo de estender o braço; ninguém começa por dar ordens aos nervos e aos músculos; mas o movimento começa por si mesmo; a nossa tarefa é segui-lo ou acabá-lo da melhor maneira. Assim, nunca decidindo, dirigimos sempre; como um cocheiro, que reconduz o cavalo empolgado; mas só pode fazê-lo se o cavalo  se empolga; e eis o que se chama partir; o cavalo anima-se e foge; o cocheiro orienta este sobressalto. Da mesma maneira um navio, se não tiver impulso, não obedece ao leme. Em resumo, é preciso partir não importa como; é então a altura de se perguntar para onde.

Quem é que escolheu? Pergunto. Ninguém escolheu, pois que somos todos, primeiro, crianças. Ninguém escolheu, mas todos primeiro fizeram; assim as vocações resultam da natureza e das circunstâncias. Eis por que aqueles que deliberam nunca decidem; e não há nada de mais ridículo que as análises de escola, em que se pesam os motivos e os móbiles; é assim que uma lenda abstracta, e que cheira a gramático, nos representa Hércules escolhendo entre o vício e a virtude. Ninguém escolheu; todos estão a caminho e todos os caminhos são bons. A arte de viver consiste primeiro, parece-me,  em não fazer querela a si mesmo sobre o partido tomado ou o ofício que se faz. Nada disso, mas fazê-lo bem. Nós gostaríamos de ver uma fatalidade nestas escolhas que já encontramos feitas e que não fizemos; mas estas escolhas não nos comprometem, porque não há maus lotes; todo o lote é bom se se quiser torná-lo bom. Não há nada que melhor marque a fraqueza que discutir sobre a sua própria natureza, ninguém tem escolha; mas uma natureza é suficientemente rica para contentar o mais ambicioso. Fazer da necessidade virtude é o belo e grande trabalho.

“Pouca sorte, por que não estudei eu?” É a desculpa do preguiçoso. Estuda então. Não creio que ter estudado seja uma grande coisa, se já não se estuda. Contar com o passado é justamente tão tolo como queixar-se do passado. Do que está feito, nada é tão belo que nele possamos descansar, nada é tão feio que não se possa salvar. Eu estaria mesmo inclinado a crer que as boas oportunidades são mais difíceis de seguir do que as más. Se as fadas ornaram o teu berço, tem cautela. O que eu vejo de belo num Miguel Ângelo, é este querer fogoso que toma em mão os dons naturais, e faz duma vida fácil uma vida difícil. Este homem sem complacência tinha os cabelos brancos quando ia, dizia ele, para a escola, a fim de tentar aprender alguma coisa. Isso mostra aos irresolutos que é sempre tempo de querer. E o marinheiro não riria de vós se lhe dissésseis que toda a travessia depende do primeiro movimento do leme? É no entanto o que se quer fazer acreditar às crianças; mas felizmente elas não escutam; mas escutam ainda de mais se acabam por formar a ideia metafísica  segundo a qual se joga toda a sua existência no b a ba. Esta ideia funesta não os muda nada na infância e prejudica-as mais tarde, porque é a desculpa dos fracos que faz os fracos. A fatalidade é a cabeça da Medusa.


Alain
(Tradução de José Ames)

Sem comentários:

Enviar um comentário