XX
Segundo o sistema da exasperação, nada é melhor do que se
coçar. É escolher o seu mal; é vingar-se de si em si. A criança experimenta
primeiro este método. Ela grita por gritar; irrita-se por estar colérico e
consola-se jurando não se consolar, o que é
amuo. Desgostar aqueles de quem gostamos e redobrar para se punir. Puní-los para se punir. Por
vergonha de ser ignorante, jurar não ler mais nada. Obstinar-se em ser obstinado. Tossir com indignação.
Procurar a injúria na recordação; aguçar o próprio a ponta; repetir a si mesmo,
com a arte do trágico, o que fere e o que humilha. Interpretar segundo a regra
de que o pior é o verdadeiro. Supor os homens maus, a fim de se condenar a
ser mau. Tentar sem fé e dizer depois de
fracassar: ”Eu quase apostava; é esta a minha sina.” Mostrar em todo o lado o
semblante do aborrecimento e aborrecer-se dos outros. Aplicar-se em ser
desagradável e admirar-se por não conseguir agradar. Buscar o sono com furor. Duvidar de toda a alegria:
fazer a tudo triste figura e objecção a tudo. Do humor fazer humor. Neste estado,
julgar-se. Dizer a si mesmo: “Sou tímido; desajeitado; perco a memória;
envelheço.” Fazer-se bem feio e olhar no espelho. Tais são as armadilhas do
humor.
Eis por que não menosprezo as pessoas que se dizem: “ Eis
um frio seco; não há nada melhor para a saúde.” O que é que eles podem fazer de
melhor? Esfregar-se as mãos é duas vezes bom quando o vento sopra do nordeste.
Aqui, o instinto vale a sabedoria e a reacção do corpo sugere-nos a alegria. Só
há uma maneira de resistir ao frio, é de ficar contente com isso. E, como dizia
Spinoza, mestre de alegria: “Não é
porque eu me aqueço que estou contente, mas aqueço-me porque estou contente.”
Semelhantemente, portanto, é preciso
sempre que nos digamos: “Não é porque eu consegui que estou contente; mas consegui
porque estava contente.” E se procurais a alegria, fazei primeiro provisão
dela. Agradecei antes de ter recebido. Porque a esperança faz renascer as
razões de esperar, e o bom presságio faz acontecer a coisa. Que tudo, pois,
seja bom presságio e sinal favorável: “ É a felicidade, se quiseres, que o
corvo te anuncia”, diz Epicteto. E não quer dizer somente que é preciso fazer
alegria de tudo; mas sobretudo que a boa esperança faz real alegria de tudo,
porque ela muda o acontecimento. Se encontrardes o aborrecido, que também se
aborrece, é preciso sorrir primeiro. E fazei confiança ao sono se quiserdes que
ele venha. Em resumo, nenhum homem pode encontrar neste mundo pior inimigo do
que ele próprio. Eu descrevia mais acima a existência duma espécie de louco.
Mas os loucos não são mais do que os nossos erros aumentados. No menor
movimento de humor há a mania da perseguição em miniatura. E decerto não nego
que este género de loucura possa provir de qualquer lesão imperceptível do
aparelho nervoso que comanda as nossas reacções; toda a irritação acaba por
cavar o seu próprio caminho. Somente, considero neles o que nos pode instruir,
e é este temível engano que eles nos mostram ampliado, como à lupa. Estas
pobres criaturas fazem a pergunta e a resposta; representam o drama completo
sozinhos. Encantamento mágico, sempre seguido de efeito. Mas compreendei
porquê.
Alain
(Tradução de José Ames)
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