quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

HUMOR

XX


Segundo o sistema da exasperação, nada é melhor do que se coçar. É escolher o seu mal; é vingar-se de si em si. A criança experimenta primeiro este método. Ela grita por gritar; irrita-se por estar colérico e consola-se jurando não se consolar, o que é  amuo. Desgostar aqueles de quem gostamos e redobrar para se punir. Puní-los para se punir. Por vergonha de ser ignorante, jurar não ler mais nada. Obstinar-se  em ser obstinado. Tossir com indignação. Procurar a injúria na recordação; aguçar o próprio a ponta; repetir a si mesmo, com a arte do trágico, o que fere e o que humilha. Interpretar segundo a regra de que o pior é o verdadeiro. Supor os homens maus, a fim de se condenar a ser  mau. Tentar sem fé e dizer depois de fracassar: ”Eu quase apostava; é esta a minha sina.” Mostrar em todo o lado o semblante do aborrecimento e aborrecer-se dos outros. Aplicar-se em ser desagradável e admirar-se por não conseguir agradar. Buscar  o sono com furor. Duvidar de toda a alegria: fazer a tudo triste figura e objecção a tudo. Do humor fazer humor. Neste estado, julgar-se. Dizer a si mesmo: “Sou tímido; desajeitado; perco a memória; envelheço.” Fazer-se bem feio e olhar no espelho. Tais são as armadilhas do humor.

Eis por que não menosprezo as pessoas que se dizem: “ Eis um frio seco; não há nada melhor para a saúde.” O que é que eles podem fazer de melhor? Esfregar-se as mãos é duas vezes bom quando o vento sopra do nordeste. Aqui, o instinto vale a sabedoria e a reacção do corpo sugere-nos a alegria. Só há uma maneira de resistir ao frio, é de ficar contente com isso. E, como dizia Spinoza,  mestre de alegria: “Não é porque eu me aqueço que estou contente, mas aqueço-me porque estou contente.” Semelhantemente, portanto,  é preciso sempre que nos digamos: “Não é porque eu consegui que estou contente; mas consegui porque estava contente.” E se procurais a alegria, fazei primeiro provisão dela. Agradecei antes de ter recebido. Porque a esperança faz renascer as razões de esperar, e o bom presságio faz acontecer a coisa. Que tudo, pois, seja bom presságio e sinal favorável: “ É a felicidade, se quiseres, que o corvo te anuncia”, diz Epicteto. E não quer dizer somente que é preciso fazer alegria de tudo; mas sobretudo que a boa esperança faz real alegria de tudo, porque ela muda o acontecimento. Se encontrardes o aborrecido, que também se aborrece, é preciso sorrir primeiro. E fazei confiança ao sono se quiserdes que ele venha. Em resumo, nenhum homem pode encontrar neste mundo pior inimigo do que ele próprio. Eu descrevia mais acima a existência duma espécie de louco. Mas os loucos não são mais do que os nossos erros aumentados. No menor movimento de humor há a mania da perseguição em miniatura. E decerto não nego que este género de loucura possa provir de qualquer lesão imperceptível do aparelho nervoso que comanda as nossas reacções; toda a irritação acaba por cavar o seu próprio caminho. Somente, considero neles o que nos pode instruir, e é este temível engano que eles nos mostram ampliado, como à lupa. Estas pobres criaturas fazem a pergunta e a resposta; representam o drama completo sozinhos. Encantamento mágico, sempre seguido de efeito. Mas compreendei porquê.


Alain
(Tradução de José Ames)

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