quarta-feira, 25 de abril de 2012

CONSOLAÇÃO

LX


A felicidade e a infelicidade são impossíveis de imaginar. Não falo dos prazeres propriamente ditos, nem das dores, como reumatismos, dores de dentes, ou suplícios da Inquisição; disso pode-se fazer uma ideia evocando as causas, porque as causas têm uma acção certa; por exemplo se a água a ferver salpicar a minha mão, se sou atropelado por um automóvel, se fico com uma mão entalada numa porta, em todos esses casos eu avalio mais ou menos a minha dor, ou, tanto quanto  quero saber, a dor dum outro.

Mas desde que se trata dessa cor das opiniões que faz a felicidade ou a desgraça, nada se pode prever nem imaginar, nem para os outros, nem para si. Tudo depende do curso dos pensamentos, e não se pensa como se quer; por maioria de razão podemos ver-nos livres, sem sabermos porquê, de pensamentos nada agradáveis. O teatro, por exemplo, ocupa-nos  e desvia-nos com uma violência que é risível, se se atenta às pobres causas, uma tela pintada, um berro, uma mulher que faz de conta que chora; mas estas macaquices livram-nos das lágrimas, de verdadeiras lágrimas; por um momento trazemos todas as penas de todos os homens pela virtude duma má declamação. No instante seguinte, estaremos a mil léguas de nós mesmos e de todas as penas, em plena viagem. O desgosto e a consolação poisam e voam como pássaros. É de corar de vergonha; é de corar dizer como Montesquieu: “Nunca tive um desgosto que uma hora de leitura não dissipasse.” É no entanto claro que, se verdadeiramente se lê, estaremos no que lemos.

Um homem que vai para a guilhotina, num furgão, é de lastimar; porém, se pensasse noutra coisa, não seria mais infeliz no seu furgão do que eu sou agora. Se conta as curvas ou os solavancos, pensa em curvas e em solavancos. Um cartaz visto de longe, e que tentasse ler, podia muito bem ocupá-lo no derradeiro momento; o que é que sabemos? E o que é que ele sabe?

Um camarada que se afogou contou-me como foi. Tinha caído entre um barco e o cais, e ficou debaixo do casco um bom momento; foi retirado inanimado; regressou pois da morte, pode-se dizer. Eis as suas recordações. Achou-se na água de olhos abertos, e via diante de si flutuar um cabo;  dizia para si que podia  agarrá-lo, mas  não lhe apetecia nada; esta visão de água verde e de cabo flutuante enchia o seu pensamento. Tais foram os seus últimos momentos, segundo ele me contou.


Alain
(Tradução de José Ames)

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