LX
A felicidade e a infelicidade são impossíveis de imaginar.
Não falo dos prazeres propriamente ditos, nem das dores, como reumatismos,
dores de dentes, ou suplícios da Inquisição; disso pode-se fazer uma ideia
evocando as causas, porque as causas têm uma acção certa; por exemplo se a água
a ferver salpicar a minha mão, se sou atropelado por um automóvel, se fico com
uma mão entalada numa porta, em todos esses casos eu avalio mais ou menos a
minha dor, ou, tanto quanto quero saber,
a dor dum outro.
Mas desde que se trata dessa cor das opiniões que faz a
felicidade ou a desgraça, nada se pode prever nem imaginar, nem para os outros,
nem para si. Tudo depende do curso dos pensamentos, e não se pensa como se
quer; por maioria de razão podemos ver-nos livres, sem sabermos porquê, de
pensamentos nada agradáveis. O teatro, por exemplo, ocupa-nos e desvia-nos com uma violência que é risível,
se se atenta às pobres causas, uma tela pintada, um berro, uma mulher que faz
de conta que chora; mas estas macaquices livram-nos das lágrimas, de
verdadeiras lágrimas; por um momento trazemos todas as penas de todos os homens
pela virtude duma má declamação. No instante seguinte, estaremos a mil léguas
de nós mesmos e de todas as penas, em plena viagem. O desgosto e a consolação
poisam e voam como pássaros. É de corar de vergonha; é de corar dizer como
Montesquieu: “Nunca tive um desgosto que uma hora de leitura não dissipasse.” É
no entanto claro que, se verdadeiramente se lê, estaremos no que lemos.
Um homem que vai para a guilhotina, num furgão, é de
lastimar; porém, se pensasse noutra coisa, não seria mais infeliz no seu furgão
do que eu sou agora. Se conta as curvas ou os solavancos, pensa em curvas e em
solavancos. Um cartaz visto de longe, e que tentasse ler, podia muito bem
ocupá-lo no derradeiro momento; o que é que sabemos? E o que é que ele sabe?
Um camarada que se afogou contou-me como foi. Tinha caído
entre um barco e o cais, e ficou debaixo do casco um bom momento; foi retirado
inanimado; regressou pois da morte, pode-se dizer. Eis as suas recordações.
Achou-se na água de olhos abertos, e via diante de si flutuar um cabo; dizia para si que podia agarrá-lo, mas não lhe apetecia nada; esta visão de água
verde e de cabo flutuante enchia o seu pensamento. Tais foram os seus últimos
momentos, segundo ele me contou.
Alain
(Tradução de José Ames)
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