XLVI
É bom ter alguma dificuldade em viver e não seguir um caminho todo aplanado. Lastimo
os reis se só precisam de desejar; e os deuses, se existem em alguma parte,
devem ser um pouco neurasténicos. Diz-se que nos tempos passados eles tomavam a
forma de viajantes e vinham bater às portas; sem dúvida encontravam um pouco de
felicidade em experimentar a fome, a sede e as paixões do amor. Só que, quando
pensavam um pouco no seu poder, diziam para
si que tudo aquilo era um jogo, e que podiam matar os seus desejos se
quisessem, suprimindo o tempo e a distância. No final de contas, aborreciam-se;
Devem ter-se enforcado ou afogado, desde esse tempo; ou então dormem como a
bela dormia no bosque. A felicidade supõe sem dúvida sempre alguma inquietação,
alguma paixão, uma ponta de dor que nos desperte a nós mesmos.
É normal que se tenha mais prazer pela imaginação do que
pelos bens reais. Isso vem de que, quando se têm os bens reais, se crer que
tudo está dito, e nos sentamos em vez de correr. Há duas riquezas; a que deixa
sentado aborrece; a que agrada é a que quer projectos ainda e trabalhos, como é
para o camponês um campo que ele cobiçava, e de que é enfim o dono; porque é a
força que agrada; não a força em repouso, mas a força em acção. O homem que não
faz nada não gosta de nada. Trazei-lhe a felicidade já feita, ele desvia a cabeça
como um doente. De resto, quem não gosta mais de tocar música do que ouvi-la? O
difícil é o que agrada. Por isso todas as vezes
que há um obstáculo no caminho, isso fustiga o sangue e reaviva o fogo.
Quem queria uma coroa olímpica se a ganhasse sem esforço? Ninguém a queria.
Quem queria jogar às cartas sem arriscar nunca perder? Eis um velho rei que
joga com os cortesãos; quando perde, enfurece-se, e os cortesãos sabem-no bem;
desde que os cortesãos aprenderam a jogar bem, o rei nunca perde. Vede também
como ele repudia as cartas. Ele levanta-se, monta a cavalo; parte para a caça;
mas é uma caça de rei; a caça vem-lhe ter às pernas; os cabritos também são
cortesãos.
Conheci mais de um rei. Eram pequenos reis, dum pequeno
reino; reis na sua família, demasiado amados, demasiado adulados, demasiado mimados, demasiado bem
servidos. Não tinham tempo de desejar. Olhos atentos liam o seu pensamento. Ora
bem, estes pequenos Júpiteres queriam apesar de tudo lançar o raio; inventavam
obstáculos; forjavam desejos, caprichosos, mudavam como um sol de Janeiro,
queriam a todo o preço querer, e caíam do aborrecimento na extravagância. Que
os deuses, se não morreram de aborrecimento,
não vos dêem para governar desses reinos chatos; que vos conduzam por
caminhos de montanha, que vos dêem por companheira uma boa mula da Andaluzia,
que tenha olhos como poços, a fronte como uma bigorna, e que pare de repente
porque vê na estrada a sombra das suas orelhas.
Alain
(Tradução de José Ames)
Sem comentários:
Enviar um comentário