segunda-feira, 2 de abril de 2012

O REI ABORRECE-SE

XLVI



É bom ter alguma dificuldade em viver e  não seguir um caminho todo aplanado. Lastimo os reis se só precisam de desejar; e os deuses, se existem em alguma parte, devem ser um pouco neurasténicos. Diz-se que nos tempos passados eles tomavam a forma de viajantes e vinham bater às portas; sem dúvida encontravam um pouco de felicidade em experimentar a fome, a sede e as paixões do amor. Só que, quando pensavam um pouco no seu poder,  diziam para si que tudo aquilo era um jogo, e que podiam matar os seus desejos se quisessem, suprimindo o tempo e a distância. No final de contas, aborreciam-se; Devem ter-se enforcado ou afogado, desde esse tempo; ou então dormem como a bela dormia no bosque. A felicidade supõe sem dúvida sempre alguma inquietação, alguma paixão, uma ponta de dor que nos desperte a nós mesmos.

É normal que se tenha mais prazer pela imaginação do que pelos bens reais. Isso vem de que, quando se têm os bens reais, se crer que tudo está dito, e nos sentamos em vez de correr. Há duas riquezas; a que deixa sentado aborrece; a que agrada é a que quer projectos ainda e trabalhos, como é para o camponês um campo que ele cobiçava, e de que é enfim o dono; porque é a força que agrada; não a força em repouso, mas a força em acção. O homem que não faz nada não gosta de nada. Trazei-lhe a felicidade já feita, ele desvia a cabeça como um doente. De resto, quem não gosta mais de tocar música do que ouvi-la? O difícil é o que agrada. Por isso todas as vezes  que há um obstáculo no caminho, isso fustiga o sangue e reaviva o fogo. Quem queria uma coroa olímpica se a ganhasse sem esforço? Ninguém a queria. Quem queria jogar às cartas sem arriscar nunca perder? Eis um velho rei que joga com os cortesãos; quando perde, enfurece-se, e os cortesãos sabem-no bem; desde que os cortesãos aprenderam a jogar bem, o rei nunca perde. Vede também como ele repudia as cartas. Ele levanta-se, monta a cavalo; parte para a caça; mas é uma caça de rei; a caça vem-lhe ter às pernas; os cabritos também são cortesãos.

Conheci mais de um rei. Eram pequenos reis, dum pequeno reino; reis na sua família, demasiado amados, demasiado  adulados, demasiado mimados, demasiado bem servidos. Não tinham tempo de desejar. Olhos atentos liam o seu pensamento. Ora bem, estes pequenos Júpiteres queriam apesar de tudo lançar o raio; inventavam obstáculos; forjavam desejos, caprichosos, mudavam como um sol de Janeiro, queriam a todo o preço querer, e caíam do aborrecimento na extravagância. Que os deuses, se não morreram de aborrecimento,  não vos dêem para governar desses reinos chatos; que vos conduzam por caminhos de montanha, que vos dêem por companheira uma boa mula da Andaluzia, que tenha olhos como poços, a fronte como uma bigorna, e que pare de repente porque vê na estrada a sombra das suas orelhas.


Alain
(Tradução de José Ames)

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