LXI
O culto dos mortos é um belo costume; e a festa dos mortos
é colocada como é preciso, no momento em que se torna visível, por sinais
bastante claros, que o sol nos abandona. As flores secas, estas folhas amarelas
e vermelhas sobre as quais caminhamos, as noites longas, e os dias preguiçosos
que parecem noites, tudo isso faz pensar na fadiga, no repouso, no sono, no
passado. O fim dum ano é como o fim dum dia e como o fim duma vida; como o
futuro não oferece então senão noite e sono, naturalmente o pensamento volta ao
que foi feito e torna-se historiador. Há assim uma harmonia entre os costumes,
o tempo que faz e o curso dos nossos pensamentos. Por isso mais de um homem,
nesta estação, vai evocar as sombras e falar-lhes.
Mas como as evocar? Como agradar-lhes? Ulisses dava-lhes
de comer; nós trazemos-lhes flores; mas todas as oferendas só são para virar o
nosso espírito para elas e pôr em marcha a conversação. É bastante claro que é
o pensamento dos mortos que se quer
evocar e não o seu corpo; e é claro que é em nós mesmos que o seu pensamento
dorme. Isso não impede que as flores, as coroas e os túmulos floridos tenham
sentido. Como não pensamos conforme queremos, e que o curso dos nossos
pensamentos depende principalmente daquilo que vemos, ouvimos e tocamos, é
muito razoável que nos ofereçamos certos espectáculos, a fim de em nós
provocarmos ao mesmo tempo os devaneios que aí estão como que ligados. Eis em
que é que os ritos religiosos têm valor.
Mas eles são um meio só; não são um fim; é preciso portanto não ir visitar os
mortos como outros ouvem a missa ou rezam o seu terço.
Os mortos não estão mortos, é muito claro pois que nós
vivemos. Os mortos pensam, falam e agem; podem aconselhar, querer, aprovar,
censurar; tudo isso é verdadeiro; mas é preciso entendê-lo. Tudo isso está em
nós; tudo isso está bem vivo em nós.
Então, direis vós, nós não podemos esquecer os mortos; e é
inútil pensarmos neles; pensar em si, é pensar neles. Sim, mas é bastante comum
que nunca pensemos em nós, verdadeiramente em nós, seriamente em nós. Somos
demasiado fracos e demasiado inconstantes aos nossos próprios olhos; estamos
demasiado perto de nós; não é fácil encontrar uma boa perspectiva de si, que
deixe tudo na verdadeira proporção. Qual é então o amigo da justiça que pensa
continuamente na justiça que ele quer? Pelo contrário, vemos os mortos segundo
a sua verdade, por essa piedade que esquece as pequenas coisas; e a força do
seu conselho, que é talvez o maior facto humano, vem-lhes de que já não
existem; porque existir é responder aos choques do mundo envolvente; é, mais de
uma vez por dia, e mais de uma vez por hora, esquecer aquilo que juramos ser.
Por isso é cheio de sentido perguntar-se o que é que os mortos querem. E olhai
bem, escutai bem; os mortos querem viver; querem viver em nós, querem que a
nossa vida ricamente desenvolva aquilo que eles quiseram. Assim os túmulos nos
reenviam à vida. Assim o nosso pensamento salta alegremente por cima do próximo
Inverno, até à próxima Primavera e até às primeiras folhas. Ontem olhei um
caule de lilás cujas folhas iam cair, e aí vi alguns rebentos.
Alain
(Tradução de José Ames)
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