terça-feira, 17 de abril de 2012

DECLAMAÇÕES

LIV


Às vezes encontramos na estrada um espectro humano que se aquece ao sol ou que se arrasta para casa; esta visão da extrema decrepitude inspira-nos um horror insuperável no primeiro momento; fugimos dizendo: “Por que é que esta coisa humana não está já morta?” Ela gosta ainda da vida, no entanto: aquece-se ao sol; não quer morrer. Duro caminho para os nossos pensamentos; a reflexão muitas vezes cambaleia aí, fere-se, irrita-se, lança-se num mau caminho. É bem feito.

Como eu procurava a boa estrada, depois duma visão deste género, por discursos prudentes e tacteantes, via diante de mim um amigo todo a tremer de má eloquência, com o fogo dos infernos nos olhos. Por fim, bradou: “Tudo é miséria, disse. Aqueles que estão de saúde temem a doença e a morte; põem nisso todas as suas forças; não perdem nada do seu terror; provam-no todo inteiro. E veja estes doentes; eles deviam chamar a morte; mas nada disso;  repudiam-na; esse medo acresce aos seus males. Você diz: Como se pode recear a morte quando a vida é atroz a esse ponto? Você vê no entanto que se pode odiar a morte e o sofrimento ao mesmo tempo; e eis como nós vamos acabar.”

O que ele dizia parecia-lhe absolutamente evidente; e pela minha fé, eu igualmente acreditaria, se quisesse. Não é difícil ser infeliz; o que é difícil, é ser feliz; não é uma razão para não se tentar; pelo contrário; o provérbio diz que todas as  coisas belas são difíceis.

Tenho também razões para me acautelar contra essa eloquência infernal, que me engana por uma falsa luz de evidência. Quantas vezes já não me provei a mim mesmo que a minha desgraça não tinha remédio; e por quê? Por uns olhos de mulher, talvez encandeados ou fatigados, ou ensombrados por uma nuvem do céu; no máximo, por algum pensamento medíocre, por qualquer movimento da bílis, algum cálculo de vaidade que eu supunha através da expressão e das palavras; porque todos nós já conhecemos essa estranha loucura; e rimos com vontade um ano depois. Tiro disso que a paixão nos ilude, desde que as lágrimas, os soluços tão perto, o estômago, o coração, o ventre, os gestos violentos, a contracção inútil dos músculos se confunde com o arrazoado. Os ingénuos caem nisso todas as vezes; mas eu sei que essa má luz depressa se extingue; quero extingui-la imediatamente; isso é-me possível; basta que eu não declame; conheço suficientemente bem a força da minha própria voz sobre mim mesmo; quero, pois, falar a mim mesmo, com simplicidade e não como trágico. Eis quanto ao tom. Sei também que a doença e a morte são coisas comuns e naturais, e que esta revolta é certamente um pensamento falso e inumano; porque um pensamento verdadeiro e humano deve sempre, parece-me, estar de algum modo adaptado à condição humana e ao curso das coisas. E é já uma razão bastante forte para não nos lançarmos como  estouvados nas queixas que alimentam a cólera e que a cólera alimenta. Círculo infernal; mas sou eu que sou o diabo, e sou eu quem tem a forquilha.


Alain
(Tradução de José Ames)

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