LIV
Às vezes encontramos na estrada um espectro humano que se
aquece ao sol ou que se arrasta para casa; esta visão da extrema decrepitude
inspira-nos um horror insuperável no primeiro momento; fugimos dizendo: “Por
que é que esta coisa humana não está já morta?” Ela gosta ainda da vida, no
entanto: aquece-se ao sol; não quer morrer. Duro caminho para os nossos
pensamentos; a reflexão muitas vezes cambaleia aí, fere-se, irrita-se, lança-se
num mau caminho. É bem feito.
Como eu procurava a boa estrada, depois duma visão deste
género, por discursos prudentes e tacteantes, via diante de mim um amigo todo a
tremer de má eloquência, com o fogo dos infernos nos olhos. Por fim, bradou:
“Tudo é miséria, disse. Aqueles que estão de saúde temem a doença e a morte;
põem nisso todas as suas forças; não perdem nada do seu terror; provam-no todo
inteiro. E veja estes doentes; eles deviam chamar a morte; mas nada disso; repudiam-na; esse medo acresce aos seus males.
Você diz: Como se pode recear a morte quando a vida é atroz a esse ponto? Você
vê no entanto que se pode odiar a morte e o sofrimento ao mesmo tempo; e eis
como nós vamos acabar.”
O que ele dizia parecia-lhe absolutamente evidente; e pela
minha fé, eu igualmente acreditaria, se quisesse. Não é difícil ser infeliz; o
que é difícil, é ser feliz; não é uma razão para não se tentar; pelo contrário;
o provérbio diz que todas as coisas
belas são difíceis.
Tenho também razões para me acautelar contra essa eloquência
infernal, que me engana por uma falsa luz de evidência. Quantas vezes já não me
provei a mim mesmo que a minha desgraça não tinha remédio; e por quê? Por uns
olhos de mulher, talvez encandeados ou fatigados, ou ensombrados por uma nuvem
do céu; no máximo, por algum pensamento medíocre, por qualquer movimento da
bílis, algum cálculo de vaidade que eu supunha através da expressão e das
palavras; porque todos nós já conhecemos essa estranha loucura; e rimos com
vontade um ano depois. Tiro disso que a paixão nos ilude, desde que as
lágrimas, os soluços tão perto, o estômago, o coração, o ventre, os gestos
violentos, a contracção inútil dos músculos se confunde com o arrazoado. Os
ingénuos caem nisso todas as vezes; mas eu sei que essa má luz depressa se
extingue; quero extingui-la imediatamente; isso é-me possível; basta que eu não
declame; conheço suficientemente bem a força da minha própria voz sobre mim
mesmo; quero, pois, falar a mim mesmo, com simplicidade e não como trágico. Eis
quanto ao tom. Sei também que a doença e a morte são coisas comuns e naturais,
e que esta revolta é certamente um pensamento falso e inumano; porque um
pensamento verdadeiro e humano deve sempre, parece-me, estar de algum modo
adaptado à condição humana e ao curso das coisas. E é já uma razão bastante
forte para não nos lançarmos como
estouvados nas queixas que alimentam a cólera e que a cólera alimenta.
Círculo infernal; mas sou eu que sou o diabo, e sou eu quem tem a forquilha.
Alain
(Tradução de José Ames)
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