terça-feira, 24 de abril de 2012

OS MALES DOS OUTROS

LIX


O moralista, é La Rochefoucauld, creio, que escreveu: “Temos sempre força suficiente para suportar os males dos outros”, disse seguramente qualquer coisa de verdadeiro. O que é muito mais belo de notar, é que nós temos sempre força suficiente para suportar os nossos próprios males. E é bem preciso. Quando a necessidade nos coloca a mão no ombro, estamos bem presos. Era preciso então morrer; ou então, vive-se como se pode; e a maior parte fica-se por este último partido. A força da vida é admirável.

Assim os inundados, eles adaptavam-se. Não gemiam no passadiço; punham o pé. Aqueles que se amontoavam nas escolas e nos outros lugares públicos faziam o seu melhor para aí acampar, comiam e dormiam cheios de vontade. Os que estiveram na guerra contam a mesma coisa; as grandes penas não são então porque se está na guerra, mas porque se tem frio nos pés; pensa-se furiosamente em acender um fogo, e ficamos contentíssimos quando nos aquecemos.

Podia-se mesmo dizer que, quanto mais a existência é difícil, melhor se suportam as penas e melhor se gozam os prazeres; porque a previsão não tem tempo de ir até aos males simplesmente possíveis;  ela é mantida sob rédea pela necessidade. Robinson só começa a lamentar a  pátria quando construiu a sua casa. É sem dúvida por essa razão que ao  rico agrada a caça; são então males próximos, como uma dor no pé, ou prazeres próximos, como beber bem e bem comer; e a acção arrasta tudo, tudo encadeia. Aquele que põe toda a sua atenção num acto bastante difícil, esse é perfeitamente feliz. O que pensa no seu passado ou no seu futuro não pode ser completamente feliz. Enquanto carregamos o peso das coisas, é preciso que sejamos felizes ou que pereçamos, mas desde que se carrega, com inquietude, o peso de si, todo o caminho é rude. O passado e o futuro arrastam duro pela estrada.

Em suma, era preciso não pensar em si. O divertido, é que são os outros que me reconduzem a mim pelos seus discursos sobre si próprios. Agir em conjunto, é sempre bom; falar em conjunto, por falar, para gemer, para recriminar, é um dos grandes flagelos deste mundo. Sem contar que o rosto humano é diabolicamente expressivo, e chega a despertar tristezas que as coisas me faziam esquecer. Só somos egoístas em sociedade, pelo choque dos indivíduos, pela resposta dum  a outro, resposta da boca, resposta dos olhos, resposta do coração fraternal. Uma queixa desencadeia mil queixas; um medo desencadeia mil medos. Todo o rebanho corre em cada carneiro. Eis por que um coração sensível é sempre um pouco misantropo. São coisas em que a amizade deve pensar sempre. Chamaríamos demasiado depressa egoísta ao homem sensível que procura a solidão por precaução contra as mensagens humanas; não é dum coração seco suportar dificilmente a inquietação, a tristeza, o sofrimento, pintados num rosto amigo. E duvida-se que aqueles que de boa vontade fazem sociedade com a desgraça tenham mais atenção aos seus próprios males, ou mais coragem, ou mais indiferença. Este moralista foi só malicioso. Os males dos outros são pesados de suportar.


Alain
(Tradução de José Ames)

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