XLXIX
Em “Recordações da Casa dos Mortos”, Dostoiewski
faz-nos ver forçados ao natural, todas as hipocrisias do luxo, se assim se pode
dizer, são retiradas; e embora lhe fiquem ainda algumas hipocrisias de
necessidade, o fundo do ser humano aparece algumas vezes.
Os forçados trabalham; e muitas vezes os seus trabalhos
são bastante inúteis; por exemplo, demolem um velho barco para fazer lenha,
numa terra, em que a madeira não custa quase nada. Eles sabem-no bem; por isso,
enquanto trabalham ao longo de todo o dia, sem qualquer esperança, são
preguiçosos, tristes e desajeitados. Mas se se lhes dá uma tarefa para o dia,
tarefa pesada e difícil, ei-los logo hábeis, engenhosos e alegres. São-no ainda
mais logo que se trata dum trabalho
realmente útil, como limpar a neve. Mas é preciso ler estas páginas espantosas
onde se encontra uma descrição verdadeira e sem comentário. Aí se vê como o
trabalho útil é por ele mesmo um prazer; por ele mesmo e não pelas
vantagens que dele se podem retirar. Por exemplo, eles fazem viva e
alegremente um trabalho determinado, após o qual se repousarão; esta ideia, de
que vão ganhar talvez uma meia hora no fim da jornada, põe-nos em movimento e
todos de acordo para fazer depressa; Mas uma vez este problema posto, é o
próprio problema que lhes agrada; e o prazer de inventar, de realizar, de
querer e depois fazer, importa-lhes muito mais do que o prazer que se
prometem desta meia hora, que será sempre uma meia hora de prisão. E imagino
que, se ela é passável, será ainda pela recordação ainda quente deste trabalho
tão vivamente conduzido. O maior prazer humano está sem dúvida num trabalho difícil e livre feito em
cooperação, como o mostram os jogos.
Há pedagogos que tornariam as crianças preguiçosas para
toda a vida, só porque querem que todo o tempo seja ocupado; a criança então
habitua-se a trabalhar lentamente, quer dizer, a trabalhar mal; o resultado é
uma espécie de fadiga acabrunhante, continuamente misturada ao trabalho; em vez
do que, se separardes o trabalho e a fadiga, ambos são agradáveis. Os trabalhos
lânguidos parecem-se com esses passeios
que se fazem só para andar e apanhar ar. Está-se fatigado todo o tempo do
passeio; já não se está quando se volta, enquanto que no trabalho mais penoso nos sentimos infatigáveis e
ligeiros; a seguir goza-se uma distensão perfeita e enfim um bom sono.
Alain
(Tradução de José Ames)
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