segunda-feira, 30 de abril de 2012

O INGÉNUO PRESUMIDO (*)

LXII


Aqueles que se entregam aos acessos de tosse com uma espécie de furor esperam, de facto, aliviar-se duma pequena cócega na garganta; por este belo método só irritam a  garganta, ficam sem fôlego e extenuados. Por isso, nos hospitais e noutras casas de saúde, se ensina aos doentes a não tossir; o que se consegue primeiro retendo a tosse tanto quanto se pode; melhor ainda engolindo a saliva até ao momento em que se vai tossir; porque um destes movimentos exclui o outro; e enfim não se deixando indispor nem irritar  por esta pequena cócega, que acalma por si mesma se conseguirmos desprezá-la.

Do mesmo modo, há doentes que se coçam e que se dão assim uma espécie de prazer confuso, misturado com a dor, que em seguida pagam com dores mais agudas ainda. Da mesma maneira aqueles que tossem com toda a vontade, chegam a uma espécie de fúria contra eles mesmos. É um método de ingénuo presumido.

A insónia oferece dramas do mesmo género em que se sofre do mal que fazemos a nós mesmos. Porque nada impede  que fiquemos algum tempo sem dormir; e não se está assim tão mal num leito. Mas a cabeça trabalha; diz-se que quer dormir; aplica-se a dormir, põe nisso toda a sua atenção, e tão bem,  que se fica desperto por esta vontade e por esta mesma atenção. Ou então irritamo-nos, contamos as horas, julgamos absurdo não empregar melhor o tempo precioso do repouso; ao mesmo tempo saltamos e viramo-nos como uma carpa na relva. Método de ingénuo presumido.

Ou ainda melhor, e tanto de dia como de noite, se se tem algum motivo para estar descontente, volta-se a isso logo que se pode; retoma-se a sua própria história como se fosse um romance bem negro que se deixou aberto em cima da mesa;  Mergulhamos assim no nosso próprio desgosto; regalamo-nos nele; regressa-se ao que se receia esquecer; passa-se em revista todos os males possíveis que se podem prever. Coça-se o seu mal enfim. Método de ingénuo presumido.

Um amoroso a quem a sua bela mandou à vida não queria pensar noutra coisa; mas retoma a felicidade passada e as perfeições da infiel, e as sua perfídias, e as sua injustiças. Fustiga-se a si mesmo com toda a vontade. Devia, se não podia pensar noutra coisa, considerar o seu desgosto de outra maneira; dizer-se que é uma pequena tonta que já não está na flor da juventude; imaginar a vida que teria tido com esta mulher tornada velha; pesar escrupulosamente as alegrias passadas; ver o que cabe ao seu próprio entusiasmo; fazer reviver esses minutos discordantes sobre os quais se passa quando somos felizes, mas que na tristeza, servem então de consolo. Finalmente, deter a sua atenção em algum traço físico, olho, nariz, boca, mão, pé, som da voz que não agrada; há sempre; confesso que esse é um remédio heróico. É mais fácil lançarmo-nos num trabalho complicado ou numa acção difícil. Mas, de qualquer modo, é preciso aplicar-se a se consolar, em vez de se entregar ao desgosto como à voragem. E aqueles que se aplicarem de boa fé serão mais depressa consolados do que pensam.
                                                                                                                                              

(*) No original, Gribouille: pessoa ingénua que se lança estupidamente nas dificuldades que queria evitar ( Le Robert, Dicionário de Francês).


Alain
(Tradução de José Ames)

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