LV
Aquilo que eu vos desejo para este ano que recomeça, quero
dizer para o tempo que leva ao sol para subir ao seu mais alto ponto e descer
em seguida até ao mais baixo, o que eu vos desejo, é de não dizerdes nem
pensardes que tudo vai de mal a pior. “Esta sede do ouro, este ardor no prazer,
este esquecimento dos deveres, esta insolência da juventude, estes roubos e
estes crimes inauditos, esta impudência das paixões, esta estações loucas
enfim, que nos trazem quase noites quentes no coração do Inverno”, eis um
refrão velho como o mundo dos homens; ele significa simplesmente isto: "Já não
tenho o estômago nem a alegria dos meus vinte anos.”
Ainda se fosse só uma maneira de dizer aquilo que se
sente, suportaríamos este discurso, como se suporta a tristeza dos que estão
doentes. Mas os discursos têm por si mesmos uma força desmesurada; enchem a
tristeza, aumentam-na, recobrem com ela todas as coisas, como um manto, e assim
o efeito se torna causa, como se vê que uma criança pode muito bem ter medo do
seu pequeno camarada que ele próprio disfarçou em leão ou em urso.
É bastante claro que se um homem, pela natural tristeza,
ornamenta a sua casa como um cadafalso, será apenas mais triste, todas as
coisas lhe lembrando asperamente o seu desgosto. O mesmo jogo para as nossas
ideias; se pelo humor chegamos a pintar-nos os homens em negro e os negócios
públicos em decomposição, porque a borradela por sua vez nos lança no
desespero; e o homem mais inteligente é muitas vezes aquele que se ilude melhor
a si mesmo, porque as suas declamações têm uma sequência e um ar de razão.
O pior é que esta doença se pega; é como uma cólera dos
espíritos. Conheço pessoas em presença de quem não se pode dizer que os
funcionários são, no conjunto, mais
honestos e mais diligentes do que outrora. Os que seguem as suas paixões têm
uma eloquência tão natural, uma sinceridade tão tocante que é deles a galeria;
e o que quer ser justo desempenha então o papel dum ingénuo ou dum brincalhão
de mau gosto. Assim a jeremiada se estabelece como um dogma e faz em breve
parte da cortesia.
Ontem, um operário de tapeçaria, a fim de manter uma
conversa preliminar, dizia muito ingenuamente: “As estações estão perdidas.
Quem ia dizer que estamos no Inverno? E é como o verão; já não se sabe o que
é.” Dizia isto depois dos duros calores deste ano que sentiu no entanto como os
outros. Mas o lugar comum é mais forte do que os factos. E desconfiai de vós
mesmos, vós que rides do meu tapeceiro; porque nem todos os factos são tão
claros nem tão presentes na memória como o belo verão de 1911.
A minha conclusão é que
a alegria não tem autoridade, porque é jovem e que a tristeza está num
trono e é sempre demasiado respeitada. Donde tiro que é preciso resistir à
tristeza, não somente porque a alegria é boa, o que seria já uma espécie de
razão, mas porque é preciso ser justo, e que a tristeza, sempre eloquente,
sempre imperiosa, nunca quer que se veja o justo.
Alain
(Tradução de José Ames)
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